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      John Garrison: "Trump não conseguirá desmantelar a democracia americana"

      Analista diz que o mundo resistirá a Trump, mas prevê grandes prejuízos aos EUA: ‘é provável que este transtorno enfraqueça a reputação americana’

      Donald Trump (Foto: REUTERS/Nathan Howard)
      Redação Brasil 247 avatar
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      Por Marilza de Melo Foucher, especial para o Brasil 247 – Nascido nos Estados Unidos, mas com longa trajetória no Brasil, onde participou do processo de redemocratização e atuou em ONGs, universidades e na cooperação internacional, John Garrison analisou, em entrevista exclusiva, os impactos do governo Trump sobre a democracia americana, os direitos civis e a política externa dos EUA. Ex-integrante da Fundação Inter-Americana e do Banco Mundial, Garrison alerta para os retrocessos promovidos pela extrema direita e destaca a importância da resistência da sociedade civil e do Judiciário, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

      Abaixo, a entrevista completa com Jonh Garrison, especialista em arte, estudos latino-americanos, ciências do comportamento, história diplomática brasileira e relações entre Brasil e Estados Unidos: 

      Marilza de Melo Foucher (MF): Gostaríamos de saber qual o impacto da ação governamental de Trump junto à sociedade americana e no que implica o desmantelamento da política econômica dos Estados Unidos.

      John Garrison (JG): Eu considero as ações do governo Trump, depois de quase três meses de governo, muito ruins. Já vimos muitos transtornos, como a demissão de milhares de funcionários públicos de forma arbitrária, fechamento de importantes agências governamentais de cooperação internacional, pesquisa e regulação, e deportação de milhares de imigrantes, alguns sendo enviados para uma megapriprisão em El Salvador. Por fim, a política incompreensível e destrutiva de tarifas globais está ameaçando a própria economia americana, para não falar das economias de países emergentes.

      Por outro lado, não penso que o Trump conseguirá desmantelar o Estado federal ou a democracia americana, pois a Justiça já foi acionada em muitos casos para barrar as ações ilegais, e a reação política está começando a crescer. Muitos juízes têm determinado que ações de Elon Musk, através de sua agência DOGE, são ilegais e, em muitos casos, reverteram o fechamento de agências e a demissão de funcionários, pelo menos temporariamente. Na realidade, esta visão retrógrada e antidemocrática não é nova, pois o governo Reagan tentou fechar o Ministério da Educação e outras agências nos anos 80, mas não conseguiu. Embora esta investida do Trump seja bem mais séria, a expectativa é que, mesmo que consiga fechar agências ou enfraquecer o governo, os democratas poderão, em um próximo governo, restabelecer os pilares sob os quais se assentam a economia americana.

      O governo e a imagem dos Estados Unidos certamente sairão enfraquecidos desta crise, mas creio que a reação das forças democráticas no país ajudará a restabelecer as leis, especialmente aquelas concernentes aos limites do Poder Executivo.

      A história dos Estados Unidos demonstra que a democracia americana foi, de forma processual, se fortalecendo, sobretudo com o aperfeiçoamento das leis após as várias crises políticas desde a Guerra Civil de 1861 até a depressão dos anos 30. É bem verdade também que, posteriormente, foi beneficiada com o acúmulo financeiro de vários monopólios nas áreas de estradas de ferro e petróleo nos séculos passados. Entretanto, enquanto a Carta Magna de 1787 assegurava a independência dos Estados federados, bem como os direitos individuais dos seus cidadãos (Bill of Rights), seus legisladores pouco formularam sobre os limites do Poder Executivo. Imagina-se que, nem nos seus piores pesadelos, os “Founding Fathers” puderam pensar que um oligarca sem escrúpulos como Trump chegaria ao poder. Esse “vácuo” concernente à inexistência de leis claras e medidas concretas contra a eventual corrupção do Poder Executivo, contemporaneamente, se constitui em um importante “avatar” contra o povo americano.

      (MF) O presidente dos EUA reduz toda a história de lutas contra as injustiças ao que ele e seus seguidores chamam de ideologia ‘Woke’. Como a sociedade civil reage à rejeição de políticas inclusivas sobre gênero, diversidade e contra as discriminações, particularmente aos ataques direcionados aos direitos das pessoas transgêneras?

      (JG) Os apoiadores do Trump, obviamente, apoiam estas investidas contra políticas de igualdade e inclusão. Esta política reflete uma antiga estratégia dos republicanos para concentrar a atenção de seus seguidores na chamada ‘guerra cultural’, alicerçada na pauta dos costumes e normas tradicionais, enquanto eles conseguem governar em prol das classes ricas e dominantes.

      Mas creio que a maioria do eleitorado não aceita voltar atrás nos avanços conseguidos em termos de igualdade racial e de gênero, aborto, preferências sexuais e casamento gay. A maioria da sociedade, e principalmente os jovens, apoia estes avanços que remontam a muitas décadas de luta. Creio que a raiz desta política do Trump vem principalmente do racismo histórico que começou com a escravidão, mas também da misoginia que marcou a história americana por quatro séculos. Não devemos esquecer que as mulheres só conseguiram o voto em 1932, após uma luta política árdua de várias décadas, e que a população afrodescendente só conseguiu seus direitos civis plenos nos anos 60, cem anos após a abolição da escravatura. Um certo grau de racismo e misoginia sempre continuará a existir na sociedade americana, e Trump soube captá-lo para turbinar sua carreira política.

      Nesse sentido, os Estados Unidos e o Brasil são historicamente bem parecidos. Os dois países tiveram experiências similares em relação à escravidão e à misoginia. Não é por acaso que ambos os países foram governados por líderes populistas autoritários como Trump e Bolsonaro. Creio que, em particular, o ressurgimento desta visão retrógrada e excludente nos dois países surgiu como uma espécie de reação aos respectivos governos Obama e Lula. Obama foi o primeiro presidente negro na história do país aqui, e Lula foi o primeiro presidente proveniente da classe trabalhadora no Brasil. A eleição de ambos provocou a reação de elites dominantes e setores racistas e misóginos na sociedade.

      A despeito de tais semelhanças, é interessante observar que a Justiça no Brasil está sendo mais rápida e efetiva em processar o Bolsonaro do que nos Estados Unidos, onde a Justiça foi muito lenta, permitindo ao Trump burlar os vários processos judiciais. O sistema eleitoral brasileiro também conseguiu ser mais eficaz, na medida em que os Estados Unidos não dispõem de um sistema único, centralizado em termos de aplicação de regras e contagem dos votos.

      Creio que a reação política contra este movimento racista e misógino já está se manifestando aqui nos Estados Unidos, através dos grandes protestos que estão ocorrendo ao redor do país. Recentes manifestações contra as políticas de Trump reuniram milhões de pessoas em mais de 1,6 mil localidades nos 50 estados americanos, em um movimento que ficou conhecido como "Hands Off!". Penso que este movimento derrotará, mais uma vez, estas forças obscurantistas. Ele também demonstrará às novas gerações a necessidade permanente de defendermos a nossa democracia.

      (MF) Ficamos intrigados pelo silêncio dos ex-presidentes democratas… Quem são hoje os porta-vozes do Partido Democrata que estão convocando as mobilizações? Elas se organizam sobre que temáticas?

      (JG) Existe uma tradição da democracia eleitoral nos Estados Unidos de que ex-presidentes não se metem em política após deixar o governo. Creio que seja uma boa política, com o objetivo de impedir o surgimento de lideranças fortes ou famílias políticas que tentam se manter no poder, como ocorre tradicionalmente no Brasil. Embora Trump esteja atentando contra muitas dessas normas informais da democracia americana, os ex-presidentes como Bush e Obama continuam a respeitá-las. Por outro lado, Obama recentemente expressou sua opinião via rede social, conclamando os democratas, acadêmicos e juízes a resistirem aos atos ilegais do governo Trump.

      (MF) Os apoiadores de Trump mais modestos continuam mobilizados ou já existem descontentamentos? Poderia nos dar alguns exemplos em caso de críticas ao governo Trump?

      (JG) Os apoiadores tradicionais do Trump não estão tão mobilizados quanto há oito anos, quando foi eleito pela primeira vez. Mesmo nesta última campanha presidencial, Trump não conseguiu mobilizar seus apoiadores com tanta energia como no passado. Também penso que, embora saiba iludir os eleitores para se eleger duas vezes, ele tem muito mais dificuldade em governar de forma efetiva, sobretudo pela total ausência de estratégias políticas claras que lhe permitissem governar de forma menos caótica. Mesmo durante o primeiro mandato, Trump não conseguiu manter um alto patamar de aceitação no eleitorado, e sua popularidade foi diminuindo de forma progressiva.

      Assim, não creio que Trump será bem-sucedido em manejar a economia, e penso que as pesquisas mais uma vez vão apontar a diminuição de sua popularidade, dificultando que ele, ou o grupo a que pertence, seja vitorioso nas próximas eleições. De acordo com a Constituição americana, Trump não poderá ser eleito para um terceiro mandato, ainda que ele goste de provocar os democratas dizendo que “achará um meio legal de se candidatar”.

      (MF) O corte orçamentário destinado à ajuda humanitária e ao desenvolvimento pode afetar as fundações filantrópicas, por exemplo, presentes no Brasil ou em outros países da América Latina?

      (JG) Sem dúvida. O fechamento abrupto da USAID (maior agência de cooperação internacional) já está afetando negativamente não só milhares de ONGs e fundações filantrópicas ao redor do mundo, que trabalham com educação, saúde, AIDS e meio ambiente, mas também centenas de organizações similares nos Estados Unidos, que também dependem desse financiamento. Infelizmente, creio que muitas dessas agências terão que fechar suas portas.

      Eu trabalhei por alguns anos numa pequena agência governamental, a Fundação Americana, que financia ONGs e comunidades de baixa renda na América Latina há mais de 40 anos. Ela foi fechada pelo Musk, e todos os seus funcionários foram despedidos. Os funcionários e seus apoiadores reagiram rapidamente e conseguiram uma liminar na Justiça para reabrir a agência e continuar com seu trabalho, pelo menos temporariamente. Esta luta judicial continuará por muitos meses, e espero que consigamos manter a Fundação aberta.

      Neste sentido, estou esperançoso de que tanto a USAID, quanto a Fundação e outras agências de governo que apoiam a ajuda externa poderão continuar seu trabalho estratégico para diminuir a pobreza, fomentar o desenvolvimento e proteger o meio ambiente ao redor do mundo. É possível também que a USAID possa ser absorvida pelo Departamento de Estado. Embora essa opção não seja muito boa, pois poderá politizar a ajuda humanitária, de qualquer forma, ela permitiria que esta ajuda externa continuasse a fluir. De qualquer forma, como disse anteriormente, creio que estas agências serão restabelecidas pelos democratas após o término do governo Trump.

      (MF) Como os americanos percebem a declaração de guerra comercial ao mundo, principalmente à Europa, parceira fiel dos EUA? Que consequência ela terá sobre o custo de vida e o consumo dos americanos?

      (JG) Creio que a quase totalidade dos economistas do país está incrédula com a política de tarifaços, principalmente voltados aos países tradicionalmente aliados do país, como Canadá, México e países europeus. Esta política do Trump parece ser impensada, abrupta e sem uma estratégia clara. Assessores do Trump têm tido muita dificuldade em explicar na televisão quais os motivos para decisões tão imprevisíveis.

      Aparentemente, Trump formou sua opinião sobre tarifas com base na percepção de que os outros países supostamente estavam “trapaceando” os Estados Unidos, durante a década de 70, quando havia uma forte campanha contra as importações de carros e outros produtos do Japão. Ele não só está trazendo uma análise sobre comércio externo muito defasada, mas muitos acham que ele não entende de economia e se cercou de assessores que compartilham sua visão de mundo simplista e conspiratória. Na realidade, o sistema monetário e tarifário que possibilitou o livre comércio global desde os anos 50 foi forjado pelos governos americanos do pós-guerra e só tem favorecido os Estados Unidos.

      Muitos economistas acham que esta política caótica de tarifas poderá resultar em preços mais altos para os consumidores, desemprego em setores industriais afetados, como o setor automotivo, e possivelmente numa recessão da economia. Alguns acham que esta política poderá até resultar na desestabilização da economia americana e mundial e gerar uma recessão global. É muito provável que este transtorno tarifário enfraqueça as relações econômicas do país e, mesmo, a reputação do governo americano como um parceiro econômico confiável e competente.

      Acho curioso que Trump e a extrema direita nos Estados Unidos adotaram uma postura contra a globalização, um pouco parecida com a postura anterior dos grupos antiglobalização de esquerda. No Brasil de hoje, as políticas antiglobalização vêm essencialmente da direita. Embora existam nuances e motivações distintas entre as duas correntes, ambas culpam a globalização econômica por prejudicar as classes trabalhadoras em países industrializados e promover a pobreza em países em desenvolvimento.

      (MF) Você pensa que as agências multilaterais resistirão aos ataques de desestabilização de Trump?

      (JG) Eu trabalhei por quase trinta anos no Banco Mundial em Brasília e Washington. Vai ser mais difícil para o Trump tentar interferir no Banco Mundial ou no Fundo Monetário Internacional, pois eles são de caráter multilateral, onde os Estados Unidos detêm ações minoritárias (16% no Banco Mundial), e países europeus, Japão, China e BRICS, como o Brasil, detêm considerável poder. Em outras palavras, os Estados Unidos não podem agir sozinhos para fechar ou desmantelar estas instituições multilaterais. Não obstante, será possível que o governo Trump tente barrar políticas relacionadas a gênero, meio ambiente e outras no Banco Mundial.

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