Milei entrega soberania econômica da Argentina aos EUA, alerta Marcelo Zero
Analista denuncia arcabouço que abre mercado argentino de forma assimétrica e ameaça Mercosul
247 – A Argentina “virou um grande Porto Rico”. A avaliação é do sociólogo e analista internacional Marcelo Zero, durante entrevista concedida à jornalista Andrea Trus, no programa Boa Noite 247. O comentário foi feito a partir da divulgação de um framework — um arcabouço preliminar — do que pode se tornar um acordo de livre comércio entre o governo de Javier Milei e os Estados Unidos.
A “Alca unilateral” de Milei
Logo no início da conversa, Marcelo Zero afirmou que o acordo em gestação é profundamente desequilibrado. Segundo ele, Milei está “fazendo uma espécie de Alca (Área de Livre Comércio das Américas) unilateral”, já que “a Argentina faz todas as concessões e os Estados Unidos não fazem nenhuma concessão significativa”.
Zero destacou que o presidente Donald Trump, atual líder dos Estados Unidos, conduz uma política de forte protecionismo. Enquanto isso, a Argentina — em crise econômica prolongada e sem moeda forte — caminha na direção oposta, abrindo setores estratégicos da economia. “Hoje em dia é simples loucura, entendeu? É o que eu chamo de Alca unilateral”, afirmou.
Tarifa dos EUA disparou sob Trump
O analista lembrou que, desde o início do governo Trump, a tarifa média de importação dos EUA saltou de 1,5% para 18,6%, um aumento “sem precedentes históricos”, comparável apenas ao protecionismo da Grande Depressão.
Nesse cenário, Zero considera “insano” que a Argentina decida abrir amplamente seu mercado:
“Você tem uma economia frágil como a da Argentina, que está em crise há muito tempo, querendo abrir a sua economia num contexto em que a maior economia do mundo está se tornando extremamente protecionista e agressiva.”
Concessões unilaterais: indústria, agricultura e propriedade intelectual
Ao comentar o texto do framework, Marcelo Zero listou suas principais preocupações:
• Entrada irrestrita de produtos industriais dos EUA
A Argentina promete dar preferências comerciais a ampla gama de produtos norte-americanos:
- farmacêuticos
- químicos
- maquinário
- equipamentos de informática
- celulares, computadores e hardware
- veículos, caminhões, ônibus
- aparelhos médicos
“Tudo isso entra”, afirmou o analista.
• Impacto na agricultura
Além da indústria, produtos agrícolas dos EUA — fortemente subsidiados — também receberiam acesso privilegiado ao mercado argentino. Segundo Zero, isso pode devastar o setor agrícola local:
“Com esses subsídios, você não tem condições de competir na maior parte dos produtos.”
• Propriedade intelectual subordinada aos EUA
O acordo estabelece que a Argentina adequará sua legislação interna à lei norte-americana de comércio, a famosa Section 301, modificando inclusive critérios de patentes e indicações geográficas:
“A Argentina se comprometeu a fazer mudanças estruturais em sua legislação para alinhá-la à legislação norte-americana.”
• Comércio digital dominado por big techs
O país também reconheceria os EUA como “jurisdição adequada” para o comércio digital, o que significa, segundo Zero:
“A Argentina vai reconhecer os interesses das big techs norte-americanas.”
O que os Estados Unidos oferecem em troca
Marcelo Zero aponta que os EUA só prometem remover tarifas sobre produtos naturais que não produzem — como café ou manga — e abrir mercado para alguns fármacos sem patente, o que não afeta a indústria americana.
“Isso não significa absolutamente nada”, resumiu.
Terras raras e lítio na mira
O acordo ainda facilitaria o acesso dos EUA a setores estratégicos da nova economia, como:
- terras raras, com reservas nas províncias de San Juan e La Rioja
- lítio, área em que a Argentina pode se tornar o terceiro maior produtor mundial
Segundo Zero, isso representa a entrega de recursos vitais para a transição energética global.
A ameaça ao Mercosul e ao Brasil
A iniciativa de Milei também viola o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul como união aduaneira. Países do bloco só podem negociar acordos comerciais em conjunto. Para Zero:
“A Argentina tá dando uma banana para o Mercosul.”
O impacto mais forte seria sobre o Brasil, cuja indústria depende fortemente das exportações para a região:
- 93% das exportações brasileiras para o Mercosul são industriais
- o Brasil exporta 50 bilhões de dólares para a América Latina, mais do que para a União Europeia (48 bilhões) e bem acima dos EUA (40 bilhões)
“A indústria brasileira vai ficar vendida”, alertou.
Risco de “corralito 2”
Com a abertura unilateral e a expectativa de forte déficit comercial com os EUA, Zero alerta para possível colapso cambial:
“A Argentina pode realmente perder a sua indústria e agravar a escassez de dólares. Aí você pode ter que fazer um novo corralito.”
Ele lembra que Trump tem sustentado Milei com empréstimos de curto prazo:
- 20 bilhões de dólares já liberados
- promessa de mais 20 bilhões
Mas isso tem limite, segundo o analista.
Estratégia dos EUA: cerco geopolítico ao Brasil
Marcelo Zero afirmou que existe uma movimentação coordenada para isolar o Brasil na América do Sul, combinando:
- ofensiva comercial
- ataques políticos sob o pretexto do “narcoterrorismo”
- estímulo a governos ultraliberais e alinhados a Washington
“Isso pode afetar o nosso futuro e as próximas eleições.”
O que o Brasil pode fazer
Questionado sobre soluções, Zero disse que o governo brasileiro terá de agir dentro do Mercosul, alertando para a ilegalidade da iniciativa argentina. Caso Milei avance, a Argentina poderá até sair do bloco — mas, mesmo assim, deverá cumprir prazos e obrigações previstos no Tratado de Assunção.
Ele conclui destacando a importância estratégica da integração sul-americana para a economia brasileira, citando números que demonstram a relevância das exportações industriais para a América Latina.


