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“Nós somos uma geração dobradiça”, diz Juliano Medeiros

Historiador e ex-presidente do PSOL defende renovação da esquerda, transição ecológica justa e novo projeto democrático ligado à crise climática

Juliano Medeiros (Foto: Brasil 247)

247 - A relação entre democracia, juventude e crise climática estrutura a reflexão do historiador e cientista político Juliano Medeiros em um diálogo marcado por memória militante e disputa de futuro. Ao longo da conversa, ele narra sua trajetória, analisa a renovação da esquerda no Brasil e na América Latina e defende que a transição ecológica seja o eixo de um novo projeto de país e de democracia.As declarações foram dadas no programa Direito & Democracia: A Democracia diante do Desafio Ambiental, uma parceria da Academia Paulista de Direito com o Brasil 247, transmitido pela TV 247. No encontro mediado pelo jurista Alfredo Attié, Juliano revisita sua história política, comenta a COP, a geopolítica da energia, a reorganização do campo progressista e apresenta a proposta do Instituto Futuro como espaço de articulação supranacional.

Da sala de aula ao comando de um partido de esquerda

Juliano conta que sua militância começou ainda adolescente, em 1999, no movimento estudantil do ensino médio, em pleno cenário de polarização no Rio Grande do Sul. De um lado, a centro-direita liderada pelo PSDB no governo federal; de outro, a esquerda capitaneada pelo PT no governo estadual.

Segundo ele, esse ambiente de debate intenso o empurrou para a política desde cedo. “A minha militância política começou muito cedo. Eu comecei a militância política ainda na escola, no ensino médio, como estudante secundarista em 1999”, lembra. Poucos anos depois, já estava filiado ao PT, integrando a juventude petista e participando da direção no Rio Grande do Sul, quando Lula se elegeu presidente em 2002.

O passo seguinte foi a ruptura com o antigo partido. Juliano relata que deixou o PT e ajudou a construir o PSOL ao lado de lideranças como Ivan Valente, Chico Alencar, Marcelo Freixo e outros parlamentares que migraram na mesma leva. A partir daí, a militância se profissionalizou: ele passou pela UNE, tornou-se “militante profissional” remunerado, mudou-se para Brasília, onde viveu oito anos assessorando a bancada do PSOL, e depois se fixou em São Paulo, chegando à presidência da sigla.

Renovar a esquerda para responder à crise do neoliberalismo

Ao analisar sua passagem pela direção do PSOL, Juliano insere a experiência brasileira em um movimento mais amplo de renovação da esquerda no mundo. Ele cita processos em países latino-americanos como Chile, Uruguai, Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia, além de experiências na Europa, como Podemos, França Insubmissa e o Bloco de Esquerda.

Na sua leitura, a tradicional social-democracia e o progressismo latino-americano tendem a oferecer uma “volta ao passado”, tentando restaurar um equilíbrio anterior do neoliberalismo por meio de políticas redistributivas que não alteram o modelo econômico. A “nova esquerda”, ao contrário, surge para questionar os fundamentos da democracia liberal e do sistema produtivo, propondo novas agendas, novos rostos e novos compromissos históricos.

Ele lembra que, ao assumir o comando do PSOL, ajudou a formular a tese da reorganização da esquerda brasileira. A estratégia passou por abrir o partido a movimentos sociais e coletivos que já vinham se afirmando fora das estruturas partidárias: “A gente abre o PSOL pro MTST, filia o Guilherme Boulos, abre o PSOL pro movimento indígena, filia Sônia Guajajara, abre o PSOL pro movimento LGBT, filia Érica Hilton”, explica.

Diversidade como agenda estrutural, não identitária

Juliano rejeita a ideia de que as lutas de mulheres, negros, população LGBT e povos originários sejam temas periféricos ou meramente “identitários”. Para ele, tratam-se de agendas estruturais, ligadas à afirmação de sujeitos historicamente marginalizados, inclusive pela própria esquerda.

Ele aponta que o PSOL se fortaleceu ao se tornar um partido capaz de expressar essa pluralidade, sem abandonar suas raízes no movimento estudantil, sindical e na luta contra a ditadura. Com a ampliação de sua base social e de suas lideranças — entre elas Guilherme Boulos, Luiza Erundina e Sônia Guajajara —, o desafio passou a ser outro: formular um projeto de país que vá além da defesa desses grupos oprimidos e seja capaz de disputar a hegemonia política.

É nesse ponto que a crise ambiental entra com força em sua reflexão.

A crise climática como eixo de um novo projeto de país

Juliano afirma que, nos últimos anos, a questão socioambiental se tornou sua principal preocupação política. Ele insiste que a crise climática deve ser compreendida não só como ameaça, mas como oportunidade de construir um programa capaz de reorganizar a economia, o território e o próprio Estado brasileiro.

“Eu vejo a transição ecológica como uma grande oportunidade da esquerda formular um projeto de país e disputar o futuro, né?”, resume. A partir dessa chave, ele fala em reindustrialização baseada na transição energética, em novo planejamento urbano que torne as cidades mais verdes e acolhedoras, em políticas de transporte menos poluentes, em novas formas de financiamento público para sustentar a mudança de matriz energética e em reposicionar o Brasil como potência ambiental no cenário internacional.

Para o historiador, a crise climática é ao mesmo tempo uma ameaça existencial para a humanidade e uma chance histórica de disputar um projeto pós-capitalista, em que a transição ecológica funcione como fio condutor de mudanças profundas.

Meio ambiente como terreno de disputa política

Um dos momentos mais fortes da entrevista é quando Juliano descreve o debate socioambiental como um campo de disputa de sentidos, valores e projetos. Ele cita as enchentes no Rio Grande do Sul como exemplo recente de como a extrema direita tenta se apropriar do discurso da solidariedade, ao mesmo tempo em que mina a confiança no Estado.

Segundo ele, ao lançar campanhas com slogans como “povo pelo povo” e promover ações assistenciais pontuais, lideranças extremistas buscam transmitir a ideia de que o governo é inútil e que a solução estaria em privatizar tudo. Esse movimento, diz, revela que também o tema ambiental é atravessado por interesses e por disputa ideológica.

Ainda assim, Juliano considera que a esquerda tem uma vantagem: “Há um senso comum preservacionista na sociedade brasileira”, observa. Isso estaria ligado ao fato de que, em muitas famílias, a memória do campo, da roça, do mato ainda está viva, dada a urbanização recente do país. Mesmo que o meio ambiente não apareça entre as primeiras preocupações nas pesquisas, a maioria considera moralmente correto preservar florestas, rios e o ar.

Divisões internas e o conflito sobre petróleo na Amazônia

Ele não ignora, porém, as fraturas dentro do próprio campo progressista. A discussão sobre a exploração de petróleo na Amazônia é apresentada como exemplo de choque entre duas referências fortes da esquerda: o direito ao desenvolvimento, historicamente associado ao combate às desigualdades, e a necessidade de reconhecer os limites ecológicos, acolhendo as evidências da ciência sobre o aquecimento global.

Na avaliação de Juliano, abrir uma nova fronteira petrolífera em uma região estratégica como a Amazônia — central para a preservação ambiental do Brasil e do mundo — é incompatível com o discurso de enfrentamento da crise climática. As divergências apareceram na própria COP, com manifestações indígenas contra concessões de hidrovias, contra a exploração de petróleo na foz do Amazonas e em defesa da demarcação de terras como prioridade climática.

Ao mesmo tempo, setores do agronegócio e da mineração, incluindo grandes empresas que montaram uma agenda paralela ao evento, também testaram seus limites e pressionaram por um modelo de desenvolvimento baseado em recursos fósseis e em grandes projetos extrativos.

O papel do Estado brasileiro na COP

Juliano destaca que a participação do Estado brasileiro na conferência foi marcada por contrastes. Ele elogia a postura de representantes oficiais ligados à organização da COP e às áreas de meio ambiente, povos indígenas e participação social, mencionando a abertura ao diálogo com movimentos e organizações.

Por outro lado, critica a atuação de integrantes do governo responsáveis por Minas e Energia, que, segundo ele, não demonstraram a mesma sintonia com a pauta de transição energética e preservação ambiental. A COP, na sua visão, expôs não apenas conflitos entre países, mas também disputas internas sobre o que deve ser entendido como “desenvolvimento” e quais prioridades o Brasil precisa assumir no enfrentamento à crise climática.

Para a esquerda, conclui, a tarefa é transformar o “senso comum preservacionista” em força organizada — aquilo que teóricos do populismo de esquerda chamam de articulação hegemônica: reunir uma maioria dispersa em torno de um discurso e de práticas capazes de produzir mobilização e mudança social concreta.

Padrões de consumo e geopolítica da transição energética

Outro ponto importante da entrevista é a crítica aos padrões de consumo dos países do Norte global. Juliano enfatiza que não é possível promover uma transição energética justa se o planeta inteiro passar a consumir como a classe média europeia ou norte-americana.

Ele usa exemplos cotidianos, como a troca de celulares a cada dois anos, para ilustrar o tamanho do problema: se todos adotassem esse padrão, os recursos naturais se esgotariam em pouco tempo. Daí deriva uma questão complexa: como pensar o desenvolvimento dos países do Sul sem copiar o modelo de consumo do Norte — e, ao mesmo tempo, como forçar os países ricos a desacelerar seu ritmo de crescimento e consumo?

Em seguida, Juliano entra na discussão sobre controle de recursos e tecnologia. Mesmo quando países como o Brasil dispõem de minerais estratégicos para a transição ecológica, a capacidade de usá-los para gerar empregos qualificados e produtos de maior valor agregado esbarra na dependência tecnológica em relação a países e empresas que detêm patentes e conhecimento.

Ele cita o monopólio de grandes corporações sobre sementes transgênicas como símbolo desse bloqueio: empresas multinacionais controlam o mercado de sementes, vendendo variedades geneticamente modificadas que exigem compra anual e impedem a reprodução livre pelos agricultores. Para enfrentar isso, seria necessária a ação de instituições públicas, como a Embrapa, oferecendo sementes não patenteadas que possam ser replicadas.

Na mesma linha, ele menciona a disputa em torno de minerais críticos, como o lítio, essenciais para baterias e eletrificação de frotas, e a necessidade de uma economia circular que reaproveite recursos escassos. A China aparece como exemplo de país que vem acelerando sua transição energética, desmontando termelétricas a carvão, ampliando fontes renováveis e investindo em tecnologias como o hidrogênio verde.

Soberania, democracia e modelos de Estado na América Latina

Para Juliano, todas essas questões — consumo, tecnologia, recursos naturais — convergem para um debate sobre soberania e democracia. Ele lembra que os Estados latino-americanos foram forjados a partir de matrizes autoritárias, o que ajuda a explicar por que têm dificuldade em cumprir a promessa de justiça social, inclusão e participação popular.

Na sua visão, pensar um projeto democrático para o século XXI implica reformar essas estruturas, combater a “oligarquização” do Estado e enfrentar políticas neoliberais que o enfraquecem para facilitar a captura por grupos econômicos pouco representativos. A transição ecológica, nesse sentido, é também uma disputa sobre quem controla a riqueza, define prioridades de investimento e decide o rumo do desenvolvimento.

Instituto Futuro e a rede sul-americana de renovação democrática

No último bloco da entrevista, Juliano apresenta o Instituto Futuro, organização criada no Brasil como personalidade jurídica de uma rede sul-americana chamada Red Futuro. Essa rede reúne jovens lideranças de vários países da região com o objetivo de repensar o futuro da esquerda, os caminhos do desenvolvimento, a proteção da democracia e as estratégias de enfrentamento ao crime organizado e ao neoliberalismo.

Ele relata que a rede já promoveu três grandes encontros: em Santiago, em um momento marcado pela eleição de Gabriel Boric; em Bogotá, logo após a vitória de Gustavo Petro; e em La Plata, na Argentina, em diálogo com o governador Axel Kicillof. O próximo encontro está programado para Montevidéu, no Uruguai.

O Instituto Futuro, sediado no Brasil, funciona como base para financiar a rede e desenvolver projetos próprios. Entre eles, Juliano destaca uma campanha nacional em defesa da transição energética, apoiada por um fundo internacional, e iniciativas de formação sobre o Acordo de Escazú, que garante acesso à justiça e consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas por grandes empreendimentos. A organização também atua como ponto focal da rede de parlamentares por um futuro livre de combustíveis fósseis.

A geração “dobradiça” entre o passado e o futuro

Ao refletir sobre o lugar de sua geração na política, Juliano recorre a uma metáfora trazida por sua amiga Gabriela Rivadeneira, ex-presidenta da Assembleia Nacional do Equador: a ideia de uma “geração dobradiça”, que conecta dois momentos distintos da história.

“Ela diz que nós somos uma geração dobradiça, sabe? Dobradiça, que junta a porta com a parede”, conta. De um lado, estão as lutas contra o neoliberalismo dos anos 1990 e 2000 e o combate às heranças das ditaduras; de outro, as novas batalhas em torno da crise climática, da diversidade e da disputa tecnológica e geopolítica.

Juliano diz sentir a responsabilidade de honrar o legado de quem veio antes — militantes que lutaram contra a ditadura, formularam a Constituição de 1988 e construíram os partidos do campo democrático —, sem se acomodar nesse passado. O desafio, afirma, é ir além, “superando” dialeticamente as experiências anteriores para formular um projeto mais robusto, capaz de transformar o Brasil.

Ele se declara privilegiado por poder ter como interlocutores figuras como Luiza Erundina, Ivan Valente, Tarso Genro, Álvaro García Linera e o próprio Alfredo Attié, ao mesmo tempo em que dialoga com lideranças mais jovens que estão entrando na cena política. Assista: 

 

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