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Sayak Valencia desvenda a coerção da violência e a gentrificação dos afetos

Ocupação desonesta de espaços trans é vista como uma estratégia da direita para "deslegitimar o movimento"

Sayak Valencia e Sara York (Foto: Sara York/Arquivo pessoal)

Sara York, 247 - Em uma entrevista exclusiva concedida durante o Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homo Transcultura (ABETH 2025), em Brasília, a filósofa e pensadora mexicana Sayak Valencia — autora da obra seminal Capitalismo Gore — trouxe à tona questões urgentes sobre a cooptação dos movimentos sociais, a proliferação da violência como espetáculo e a persistente exclusão de sujeitos marginalizados.

Valencia, cujo trabalho investiga a intrínseca relação entre a violência, a necropolítica e o sistema econômico global, enfatizou como a morte e o sofrimento de populações vulneráveis alimentam as arcas do capitalismo.

"No meu trabalho de Capitalismo Gore, buscava investigar primeiro a relação entre o sangue e a necropolítica, o assassinato de pessoas e a alimentação das arcas econômicas do primeiro mundo através justamente da exploração, mas também do assassinato e do contínuo do assassinato e da expulsão dessas populações frágeis e vulnerabilizadas," explica Valencia.

O sistema é o vilão, não as vítimas

A pesquisadora questionou a narrativa simplista de "bons contra maus" frequentemente utilizada para descrever a violência, especialmente em contextos de crime organizado, destacando que o problema reside na estrutura sistêmica que marginaliza e expulsa.

"Os maus não são estas pessoas, os maus é o sistema que deixa fora muitas dessas populações," afirmou, referindo-se aos jovens varões racializados que são forçados a realizar "trabalho sujo" para o necropatriarcado.

Valencia apontou que esse "trabalho de morte" é, em muitos casos, a única opção, uma realidade que serve para expandir as grandes capitais internacionais que, além de tudo, "espectralizam suas responsabilidades" e manipulam as estruturas do Estado para induzir populações à morte.

A cooptacão da luta e a gentrificação emocional

A crítica de Sayak Valencia se estende à forma como o sistema absorve e neutraliza os movimentos de resistência, um processo que ela chama de "gentrificação dos afetos" e "gentrificação emocional".

O conceito de Capitalismo Gore vai além do neoliberalismo, focando-se no processo de docilização e colonização dos corpos que pavimenta o caminho para a expansão capitalista, construindo uma "subjetividade" mais do que apenas mercadorias.

A filósofa identificou uma perigosa estetização e internacionalização da violência, exemplificada pela cultura do narcotráfico em séries e entretenimento que glamourizam um fascismo violento e autoritário.

Violência como Fascinação: A agressividade é desviada para o mero consumo do espetáculo da violência, tornando-a um "lugar de desejo" para resolver conflitos simbólico-políticos, o que, por sua vez, "desativa a luta".

Retorno do Fascismo: Valencia percebeu um cansaço em "subscrever narrativas amplas" e uma reação da direita global, utilizando a estética (como no "fascinante fascismo" de Susan Sontag) e a violência indireta contra mulheres e dissidências sexuais.

"O que me dei conta é que estávamos em um momento onde a violência havia se voltado uma espécie de fascinação. Ver-se como um input para poder viver no mundo contemporâneo e decodificá-lo," revelou.

Transfeminismo como trânsito e a ética da ocupação de espaços

A partir de uma perspectiva transfeminista, Valencia propõe uma ampliação das lutas. O "trans" deve ser entendido como trânsito e movimento, uma oportunidade de incluir não apenas as pessoas trans no centro da luta, mas também migrantes, pessoas em trânsito linguístico e aqueles que experienciam outras formas de racialização.

Ao abordar a problemática da ocupação indevida de espaços e direitos trans por pessoas não-trans — um tema levantado na entrevista —, a intelectual foi enfática em sua crítica:

"Me parece completamente desonesto e antiético. Na verdade, não temos que ocupar cotas que não nos pertencem. Igual que não temos que ocupar categorias com as que não estamos dispostos a militarizá-las corporalmente."

Valencia usou a analogia da negritude para ilustrar seu ponto: mesmo possuindo ancestralidade negra, uma pessoa que detém o privilégio branco não deve se inscrever nessa categoria, pois não viveu o contexto de exclusão e violência.

A ocupação desonesta de espaços trans é vista como uma estratégia da direita para "deslegitimar o movimento" e desviar o foco da necessidade real de políticas afirmativas.

Desafios para a luta trans: Paralaxe Trans e ProlepCIS (YORK, 2020, 2025)

Em diálogo com os conceitos de Paralaxe Trans (como a sociedade cisgênera vê o sujeito trans, homogeneizando a experiência) e Prolepscs (a sustentação de uma identidade cisgênera por pessoas trans para sobrevivência), Valencia reafirmou a importância de políticas de saúde pública e enfrentamento que reconheçam as consequências e genealogias diferenciadas da experiência trans/travesti.

A luta continua sendo uma política encarnada, uma "desobediência absoluta da regra" que persiste apesar dos séculos de violência letal.

Sayak Valencia concluiu a entrevista reforçando a importância de manter uma postura ética e crítica frente à cooptação da violência e de proteger os espaços conquistados pelas comunidades mais vulneráveis.

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