Análise denuncia ofensiva neocolonialista dos Estados Unidos contra a América Latina
Ignacio Ramonet e Nicolas Maduro descrevem escalada militar de Washington contra a Venezuela e alertam para um novo pretexto de intervenção na região
247 – Em uma ampla análise publicada no jornal mexicano La Jornada, o pensador Ignacio Ramonet relata, a partir de Caracas, a construção de uma nova ofensiva neocolonialista dos Estados Unidos contra a América Latina, com foco direto na Venezuela. O autor desembarca no país no momento em que Washington executa o maior deslocamento militar no Caribe desde a primeira guerra do Golfo, em 1990, sob comando do presidente Donald Trump.
Segundo La Jornada, desde agosto, o governo norte-americano vem acumulando uma “força bélica colossal” nas proximidades das águas territoriais venezuelanas, reforçada recentemente pelo porta-aviões USS Gerald R. Ford — o maior e mais moderno da Marinha dos Estados Unidos — acompanhado de destróieres, cruzadores, submarinos, aeronaves de guerra, drones, unidades de operações especiais e contingentes de marines distribuídos também em El Salvador, Panamá e Porto Rico. O movimento já supera 15 mil militares preparados para atacar.
Novo pretexto: a narrativa do “narcoterrorismo”
Ramonet destaca que, em 14 de outubro, Donald Trump admitiu ter autorizado “operações encobertas” da CIA dentro do território venezuelano. O presidente norte-americano afirma que o objetivo é realizar uma “missão para combater os cartéis de droga” responsáveis por mortes por overdose nos Estados Unidos.
Mas Ramonet ressalta que a própria comunidade de inteligência dos EUA contesta essa versão. Os órgãos oficiais reiteram que a maioria das mortes decorre do fentanil, “um opioide que procede do México e não da Venezuela”. Além disso, “todos os estudos elaborados pelas agências mais sérias de investigação” mostram que 90% da cocaína que chega aos EUA transita pelo Pacífico, e não pelo Caribe nem pelo território venezuelano.
Apesar dessas evidências, o governo Trump iniciou, desde 2 de setembro, uma série de ataques contra embarcações civis, classificadas sem provas como “narcolanchas”. Segundo o texto, essas embarcações foram destruídas pelas forças armadas norte-americanas, resultando na morte de cerca de 80 pessoas, sem apresentação de provas de crime, sem processo judicial e sem declaração formal de guerra pelo Congresso dos EUA.
Trump insiste que militares norte-americanos podem matar legalmente suspeitos de narcotráfico porque seriam “soldados inimigos”. Para Ramonet, isso é falso tanto juridicamente quanto politicamente. Organizações internacionais, como as Nações Unidas, classificaram os ataques como “execuções extrajudiciais” e denunciaram violações ao direito internacional, apelando para que Washington cesse os bombardeios — até agora sem efeito.
Uma Caracas tranquila em meio à ameaça de ataque
Ignacio Ramonet descreve sua chegada a Caracas, onde participa da Feira do Livro para lançar seu novo livro A Conversação Infinita. Esperava encontrar um ambiente de tensão extrema diante da ameaça de ataque, mas observou uma cidade “tranquila, serena, normal”, limpa e em clima de festas de fim de ano.
Visitou shoppings como Sambil, Tolón e San Ignacio, onde encontrou “um ambiente festivo de consumo”, e notou a ausência de sinais de militarização ou pânico. “Se a intenção das autoridades norte-americanas era infundir pânico no ânimo dos caraquenhos, a operação é um fracasso rotundo”, relata.
Amigos, empresários e diplomatas confirmaram que, apesar das tensões, os cidadãos seguem levando uma vida habitual, e que o governo venezuelano busca transmitir calma.
Encontro com Nicolás Maduro
Ramonet relata que foi informado de que seria recebido pelo presidente Nicolás Maduro e o acompanharia em visita à Comuna General Rafael Urdaneta, em Cagua, no estado Aragua. Ele descreve a comuna como uma área arborizada, com casas térreas cercadas de jardins e forte presença popular.
Ao chegar, encontra “silêncio” e uma segurança “minimalista”, planejada para evitar “qualquer afluência detectável por satélites militares norte-americanos”. Maduro surge caminhando, “sem escoltas de proximidade”, acompanhado apenas por alguns assessores, demonstrando, segundo Ramonet, “forma física espetacular”, agilidade e tranquilidade.
O presidente foi recebido pela governadora Joana Sánchez, pelo ministro das Comunas, Ángel Prado, e por dezenas de comuneras — quase todas mulheres — que o saudaram com entusiasmo.
Ramonet descreve Maduro inaugurando um centro médico, entregando equipamentos para maternidade, visitando um Mercal reabilitado, oferecendo uma planta potabilizadora de água, um salão de estética e conversando com crianças em um campo de beisebol.
Mais tarde, sob mangueiras frondosas, o presidente participou de uma reunião de duas horas com os comuneros, transmitida pela TV pública. Ao final, entregou um quadro com a imagem dos dois novos santos venezuelanos — San José Gregorio Hernández e Santa Carmen Rendiles — recém canonizados, e presenteou a comunidade com uma ambulância, recebida com alegria.
Conversa reservada com o presidente venezuelano
Maduro faz um sinal discreto para que Ramonet se aproxime de seu veículo. Os dois entram sozinhos no carro, sem guarda-costas, e conversam durante a viagem de volta a Caracas.
Quando Ramonet pergunta como o presidente interpreta as pressões e ameaças contra a Venezuela, Maduro afirma:
“Eles se esforçaram muito em elaborar uma narrativa nova — a do ‘narcoterrorismo’ — mas que, no fundo, é o mesmo que sempre fizeram: elaborar um pretexto para assassinar uma esperança.”
Maduro recorda episódios históricos de intervenções dos EUA na Guatemala (1954), no Brasil (1964), na República Dominicana (1965), no Chile (1973) e no Irã (1953), sempre com o mesmo padrão: criar pretextos falsos, derrubar governos e pedir desculpas décadas depois. Ele afirma:
“Hoje imaginaram uma narrativa nova, a do ‘narcoterrorismo’, tão mentirosa quanto as precedentes. Por isso eu digo: não esperemos vários decênios para admitir uma falsidade. Reconheçam já.”
Sobre o risco de ataque direto, Maduro afirma:
“Estamos prontos para dialogar e defender a paz. Mas também nos exercitamos para qualquer contingência. Se eles quiserem vir matar um povo cristão aqui na América do Sul, chamaremos nosso povo a se mobilizar com fervor patriótico. Estamos decididos a ser livres.”
Ele reforça:
“Se eles rompem a paz e persistem em sua intenção neocolonial, vão levar uma enorme surpresa. Queremos paz, mas estamos muito bem preparados.”
Quinta coluna e operações de falsa bandeira
Ramonet pergunta sobre a chamada “quinta coluna” interna. Maduro responde:
“Não é tão poderosa… Aqui têm muito pouco apoio. Essa ‘direita maltrapilha’, como eu a chamo, é sobretudo muito desleal, muito vende-pátria.”
O presidente relata duas recentes operações de falsa bandeira que, segundo ele, foram desmanteladas pelo serviço de inteligência venezuelano:
- Um plano com explosivos contra a embaixada dos EUA em Caracas, organizado por setores extremistas da oposição local para provocar uma escalada militar.
- A captura de três mercenários vinculados à CIA que planejavam um ataque em águas de Trinidad e Tobago para gerar conflito internacional.
Maduro lembra outros episódios de falsa bandeira, como o ataque em Puente Llaguno em 2002 e o atentado na Praça Altamira, também em 2002.
A lógica geopolítica do conflito
De acordo com Maduro, a agressividade dos Estados Unidos está ligada ao impacto internacional da ascensão da China, à força crescente dos BRICS e ao surgimento do Sul Global, que desafiam a hegemonia norte-americana.
“O que esta Administração quer é reafirmar seu domínio sobre a América Latina e o Caribe, seu antigo ‘pátio traseiro’. Querem restabelecer o mando político e militar exclusivo sobre este continente para recuperar o controle dos grandes recursos estratégicos da região.”
Entre esses recursos, Maduro cita petróleo, gás, cobre, lítio, terras raras e água.
“Não conseguirão. O tempo da história não dá marcha atrás. Mais forte que a nostalgia imperial deles é o anseio de liberdade e soberania de nossos povos.”
O encerramento da viagem
A crônica se encerra com a chegada dos dois a uma casa modesta, onde conversam brevemente antes de Ramonet se despedir. O autor descreve Maduro como alguém sereno, concentrado e equipado de “descomunal coragem” em um dos momentos mais críticos da história recente da Venezuela.



