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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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João Paulada

João Paulada tinha curiosidade de jornalista e coração de Papai Noel

João Paulada (Foto: Reuters)

A véspera da véspera do Natal caiu em uma segunda-feira. As reportagens já eram previsíveis: Alvoroço das compras de última hora. Congestionamento nas estradas. Peru mais caro. Panetone em falta. Mas naquela redação a notícia mais impactante era outra: o 23/12/2019 tinha sido o último dia do João, o João Paulada.

O coração já vinha cansado e parou de vez aos 90 anos.

Mas quem foi esse homem de 89 Natais?

A mensagem escrita no correio interno da TV Globo pelo Waltinho, o Walter Mesquita, fiel amigo do João, ajuda explicar.

“Pessoal,

A filha do seu João Paulada avisa que ele está na UTI do Hospital Santa Catarina.

As visitas estão liberadas das 10 às 21 horas. Ele está com água no pulmão e muito fraquinho.

O Hospital fica na Av. Santa Catarina, 2785.

Para os mais novos, que não sabem quem é João Paulada, digo que ele foi muitas coisas aqui na Globo: motorista, ajudante, assistente, produtor informal, segurança e, principalmente, um ombro amigo que cuidava com carinho de todos nós. Paulada trabalhou na emissora por muitos anos, quando ela ainda funcionava na velha Marechal.”

Na carona do Waltinho, conto mais e começo pelo apelido. João foi artilheiro de chute forte. Poucos goleiros aguentavam a paulada que balançava as redes em Itaporanga D’Ajuda.

Em São Paulo, o João, já sem chuteiras mas sempre Paulada, tinha seu estilo. Moreno forte, de testa larga, gostava de camisa com bolso para cigarro e isqueiro; calça de tergal com bolso traseiro para o pente, sapatos bem engraxados, meia social. No verão, arriscava sandália franciscana.

Dos apresentadores aos carpinteiros da cenografia, dos diretores da empresa aos colegas do Recursos Humanos, todos conheciam o João; que também era íntimo do dono da farmácia, da mulher que vivia embaixo do Minhocão, da moça da lanchonete, do bicheiro. Conhecia pelo nome, prostitutas, garçons, o gerente do banco e muitos outros capitães da Marechal.

Ali por 1975 – com o Jornalismo amordaçado pela censura –  João ganhou o primeiro crachá da Globo. Chegou motorista. E que motorista!

Ficou famosa a história de que um poderoso diretor queria fazer um churrasco no Rio de Janeiro com a carne do restaurante Bassi, de São Paulo. Na época a melhor do Brasil, diziam.

João acordou cedo, abasteceu o carro, pegou meia dúzia de picanhas já encomendadas, cruzou a Dutra e bem antes da hora do almoço estava na mansão do executivo. Fez a entrega, ganhou um abraço e acelerou de volta. Chegou a São Paulo antes da última picanha assar na Barra da Tijuca.

Com essas e tantas outras no currículo, foi promovido. Ganhou mesa e cadeira na redação. Era o contínuo, o faz-tudo. Tudo e mais um pouco.

Diante de qualquer aperto a gente repetia: “Chama o João Paulada”.

Sem descuidar das suas tarefas, ele ajudava todo mundo. Se o carro de alguém quebrava, levava ao mecânico; se o sapato pedia meia sola, chamava o sapateiro; era assim também com quem precisasse de pintor de paredes, encanador, passeador de cachorro. Ele mesmo pechinchava o preço e trazia o troco. Ganhava agradecimentos e gorjetas. Aos mais avoados, lembrava:

“Já faz um ano que trocamos a pastilha de freio”.

“Hoje é o último dia para parcelar o IPTU”.

“A promoção de cerveja no mercado acaba amanhã”.

Era bom de manchete, o Paulada.

Como escreveu o Waltinho, lá naquele bilhete do início da história, João não tinha medo de serviço e a gente brincava que se um dia o apresentador faltasse, ele podia sentar na bancada e dar as notícias do dia.

Já a notícia da mudança de endereço da empresa foi trágica para ele. Em 1999, todos trocamos o prédio acanhado da praça Marechal Deodoro por uma torre reluzente, na região da Berrini.

Para o João, não era troca de bairro, era mudança de planeta.

Os novos vizinhos eram corretoras de valores, hotéis de luxo, shoppings. Nada disso atraía o João. Ele sofria com saudade dos ambulantes, dos brechós, do antigo casario da praça Marechal.

No bairro novo não se via casal de namorados perambulando sem pressa, ninguém passeava com cachorro, crianças não corriam para a escola. A resposta para tantas ausências, João mesmo me deu: “ninguém mora aqui, esse lugar só serve para ganhar dinheiro. Domingo é deserto.”

Em alguns meses, Paulada se despediu. Saiu admirado pela redação e confiante em uma vida melhor e mais calma.

Ouvi falar de doença e fui visitar. Diante do homem muito magro e sonolento me assustei. Levei uma camisa polo azul marinho de presente para ver se animava o amigo, mas João pouco falava, o olhar castanho perdera o brilho. Deu medo ver tanto desânimo.

Encontrei a filha de João duas semanas depois. Ela me contou que o pai tinha melhorado. De banho tomado, penteado e barbeado me recebeu com uma atitude típica do João: vestia a camisa que eu tinha dado. Ofereceu cerveja e amendoim. Bem acomodado na sala do apartamento com vista para o Minhocão e de mão dada com a mulher, a dona Alda, quis saber dos amigos e das notícias.

Só voltei a ver João na véspera da véspera. Naquela segunda-feira fria, de chuva forte e velório, conheci os outros quatro filhos, sobrinhos e netos.

Dona Valdete, 97 anos, a irmã mais velha, verdadeira professora do João, me sussurrou, já a caminho do crematório da Vila Alpina: “não estava preparada para me despedir tão cedo do meu menino.”

Nem a gente, dona Valdete.

*Essa crônica, que agora reescrevo, faz parte do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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