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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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O legado de João do Rio e a semente da esperança: um abraço ecumênico

João do Rio nos ensinou que a convivência de crenças é, antes de tudo, um traço inconfundível da nossa identidade

O legado de João do Rio e a semente da esperança: um abraço ecumênico (Foto: @scarlettrocha/@vladimirherzog)

Há mais de um século, o olhar sensível de João do Rio transformava a vida carioca em literatura. Em sua obra seminal de 1904, As religiões do Rio, o cronista não apenas descreveu a cidade; ele celebrou, com rara sensibilidade, a pluralidade religiosa que fervilhava nas ruas. As muitas igrejas evangélicas eram observadas sem julgamento, tratadas como mais uma cor vibrante no vasto painel de crenças que incluía o espiritismo, as religiões de matriz africana e o catolicismo dominante.

A atitude de João do Rio - de entender, descrever e respeitar a diversidade religiosa popular - foi um ato pioneiro de tolerância e jornalismo cultural. Ele nos ensinou que a convivência de crenças é, antes de tudo, um traço inconfundível da nossa identidade e da confusão -saudável- da vida do carioca. Disse que eram tantas igrejas,as que cada uma era um universo.

Contudo, ao celebrar a visibilidade e o luto público, é crucial lembrar que nem todas as vítimas tiveram o mesmo destino. Se a dor de Vladimir Herzog pode ser chorada em um ato ecumênico histórico, o que dizer daqueles que, na mesma época (e antes, sob a Lei da Vadiagem), eram sistematicamente apagados?

A perseguição não se limitou a jornalistas. Durante décadas, as ruas e vielas assistiram à brutalidade contra travestis, prostitutas e outros "vadios e vagabundos" que eram detidos, torturados e desapareciam sem deixar rastro. Para estes, silenciados tanto pela lei quanto pela ditadura, não houve retorno para casa, não houve luto público, não houve ato inter-religioso. Suas vidas e mortes seguem, majoritariamente, invisibilizadas na memória oficial. O abraço ecumênico, que celebramos hoje, deve expandir-se para acolher a memória e a justiça devida a estes corpos dissidentes e marginalizados.

Essa semente de respeito plantada pelo cronista encontra, hoje, um eco poderoso em um dos atos mais emblemáticos da nossa história recente: o ato inter-religioso em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado há exatos 50 anos pela ditadura militar.

Neste sábado, 25 de outubro, a Catedral da Sé, em São Paulo, não apenas relembra um mártir da liberdade de imprensa; ela reafirma o poder da união e da fé como baluartes contra a opressão. O evento recria o protesto de 1975, quando o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright - Catolicismo, Judaísmo e Protestantismo - se uniram para contestar a farsa da ditadura.

A convergência desses líderes não foi apenas um evento ecumênico; foi um ato de esperança cívica. Eles transformaram a dor da perda de Herzog em um grito unificado pela verdade e pelos Direitos Humanos, demonstrando que a fé, em sua essência, está a serviço da justiça e da dignidade.

Do Rio de João do Rio, que aprendia a conviver com a pluralidade no início do século, à São Paulo que, meio século depois, ergueu uma voz uníssona contra a tirania: a mensagem é a mesma. O respeito à diversidade e a capacidade de diferentes fés se unirem em nome de um bem maior são a melhor resposta ao preconceito e à violência.

A celebração de hoje na Sé não é apenas memória. É a esperança renovada de que, quando as religiões se unem pelo humanismo e pela verdade, elas se tornam a força mais resistente e luminosa na construção de uma sociedade livre e justa. O legado de Herzog vive não só na luta pela imprensa livre, mas na prova de que a nossa diversidade é, de fato, a nossa maior força, e que a justiça só será plena quando alcançar também os nomes e as vidas daqueles que nunca puderam ser chorados publicamente.

Em memória das vidas trans e travestis (de todos os credos e de todas as cores) que tombaram para que um dia um texto assim pudesse ser escrito!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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