Quem faz não manda: gênero e poder na segurança pública
Por que há tão poucas mulheres no comando da segurança pública?
A baixa presença feminina nos postos máximos da segurança pública não é casual nem decorre de déficit de qualificação. Ela é produto de uma arquitetura política que naturaliza a desigualdade de gênero e que, nesse campo específico, assume feições próprias e particularmente resistentes à mudança. Não se trata de uma oposição entre mulheres e homens, mas entre modelos de autoridade, formas de governar a força e projetos de poder que organizam quem decide, quem deve ser silenciado e quem é descartável dentro das organizações.
A lógica do populismo policial-penal ocupa lugar central nesse bloqueio. Ela constrói um modelo de autoridade fundado na força bruta exibicionista, na hipervirilidade performática e na figura publicitária individual do “guerreiro heroico” solitário. O que se valoriza não é o trabalho policial profissional em equipe, técnico e planejado, mas o combate espetacular. A guerra contra o bandido, mais do que contra o crime, e a guerra contra a droga, mais do que contra as facções criminais, passam a operar como promessa de “salvar a sociedade dela mesma”. O que, na prática, corresponde a conter os avanços de direitos civis, especialmente os relacionados a gênero e orientação sexual, percebidos como ameaças à ordem masculina heteronormativa tradicional, hoje sem a antiga hegemonia em casa e nas ruas.
Nesse enquadramento, a presença de mulheres em posições de mando é lida como risco de feminilização da autoridade e, portanto, como perda de identidade: identidade do comando, da força e do masculino guerreiro. Essa feminilização é interpretada como uma emasculação do “trabalho policial de verdade”, definido pelo confronto, pelo uso excessivo da força e por uma lógica de honras, vendetas e vinganças. Atividades preventivas, dissuasórias, regulatórias, mediadoras, administrativas e de repressão qualificada, comedida e com foco passam a ser desqualificadas como feminilizantes. Fora da encenação da guerra, revela-se a precarização moral desse modelo masculinista de autoridade. Isso não penaliza apenas as mulheres: também captura e sacrifica homens, especialmente jovens policiais, convertendo seus corpos em prova de virilidade, sacrifício e descartabilidade política.
A lógica do enfrentamento reforça essa engrenagem sexista ao produzir a ilusão de uma medição direta de força pelo seu excesso praticado e visibilizado: quem é mais duro, mais temido, mais agressivo. A retórica da “violência para conter a violência” funciona como tentativa de preservação de privilégios de gênero, sustentando a figura do “homem protetor” num contexto em que, de forma crescente, os lares brasileiros são chefiados por mulheres e a autoridade provedora masculina deixou de ser exclusiva e mesmo prioritária.
Aqui, masculinidade não deve ser confundida com masculinismo: o problema não é a existência de masculinidades diversas, mas a captura da autoridade por um idioma de gênero autoritário que reduz poder à força abusiva, à ostentação de uma superioridade natural perdida e à guerra despropositada.
Esse modelo insiste em manter a segurança pública como “assunto de homem”, como se apenas homens fossem capazes de compreender polícia, crime, violência e ordem. Trata-se de um negacionismo ingênuo: no Brasil, as mulheres têm sido pioneiras e protagonistas nos estudos sobre polícia, prisão, crime organizado, violência, territorialidades e periferias. Das pesquisadoras e gestoras saem diagnósticos e propostas que reafirmam a autoridade do argumento sobre os argumentos de autoridade.
Essa concepção masculinista converte a segurança pública em projeto autoritário de poder com alto retorno eleitoral. O objetivo deixa de ser produzir segurança e passa a ser ganhar eleições a qualquer preço, precificando vidas — em especial as dos policiais guerreiros empurrados para a morte, já que seu velório se torna um palanque eleitoral. Nesse arranjo, emergem figuras recorrentes: o Senhor da Guerra, que encena o poder de morte; o Mercador da Proteção, que negocia direitos e serviços nos territórios; e o Profeta do Caos, que, pela manipulação da fé, produz ameaça permanente e fideliza cidadãos inseguros a regimes do medo, normalizando práticas de exceção e governando pela instabilidade controlada.
É nesse contexto que prospera a política viril dos três “S”: sustos, que mantêm a população em estado de medo difuso e de ameaça constante; surtos de autoridade, encenados por lideranças de peito inflado, gestos duros e bravatas vazias, que substituem política pública por performance; e soluços operacionais, ações pontuais e provisórias que produzem efeitos midiáticos imediatos, mas esgotam a própria capacidade repressiva das polícias e não geram resultados sustentáveis.
Mesmo com o aumento da presença feminina nas burocracias armadas, essas instituições, salvo exceções, seguem operando sob uma lógica de masculinização, que oculta processos decisórios, esvazia o reconhecimento da qualidade da decisão, bloqueia a ascensão profissional e subordina trajetórias femininas a estilos e códigos masculinizados de autoridade. Na verdade, esse modelo impõe sofrimento a homens e mulheres que, no mundo real, não têm como sustentar esse ideal de macheza.
Em tempos de reconhecimento da diversidade de gênero, observa-se, ainda, a emergência de agentes do Estado — políticos, policiais, juízes, promotores — que ancoram sua legitimidade na ostentação corporal, na performatização da musculatura e na hipervisibilização da força excessiva. Trata-se menos de prover segurança e mais de uma reação defensiva: uma masculinidade assustada diante dos avanços civis, que tenta recompor simbolicamente um poder em erosão por meio da hipervirilidade e da ostentação operacional que sabota a própria dimensão tático-operacional do trabalho policial.
A militarização da segurança pública aprofunda esse cenário ao eleger o confronto como fim em si mesmo, privilegiando a performance individual do guerreiro em detrimento do policial profissional, do planejamento estratégico, da ação coletiva e da governança da força. Esse arranjo alimenta o decisionismo personalista: decisões complexas passam a ser tomadas de forma simplista e oportunista, “no grito e no músculo”, guiadas por impulsos e gestos desmedidos de força, em substituição a processos qualificados, à previsibilidade de comando e à responsabilização.
Cabe aqui ressaltar que, enquanto os homens são mandados para o confronto, as mulheres “põem no papel” e executam as principais políticas públicas de segurança do país. Mesmo sem os devidos créditos, de suas canetas saíram o SUSP, a Força Nacional, a Matriz Curricular das Polícias, a Doutrina Policial do Uso da Força, as Ouvidorias, as Corregedorias Unificadas, as Áreas Integradas de Segurança, os programas de prevenção social e situacional, as políticas de segurança e saúde ocupacional para os policiais e os sistemas de estatísticas, indicadores de criminalidade e de desempenho policial, entre outros exemplos.
Minha experiência em posições de comando permitiu-me constatar que a maior resistência à presença de mulheres no topo da segurança pública não veio das cadeias operacionais das polícias, que tendem a reconhecer autoridade baseada em competência e conhecimento técnico, mas dos círculos políticos e palacianos próximos ao poder. Nas antessalas, práticas recorrentes de intimidação se manifestam no chamado “papo de homem”: piadas misóginas, bravatas de virilidade, histórias exageradas de violência praticada e insinuações sobre a instabilidade emocional feminina. Trata-se de uma encenação do “lugar do homem viril”, que funciona como pedagogia informal de desestabilização e exclusão que reafirma medos das expressões femininas de gênero.
Paradoxalmente, há amplo reconhecimento de que mulheres tendem a exercer autoridade de forma mais firme, objetiva e previsível, com maior respeito a regras, acordos e limites institucionais, e menor tolerância a desvios, improvisações, intrigas, perseguições e arbitrariedades. Essas lógicas não se sustentam por quem as ocupa — homens ou mulheres —, mas pelo modo como organizam incentivos, recompensas, visibilidade e poder, penalizando qualquer forma de autoridade baseada em competência, capacidade de execução e responsabilização.
O contraste é claro: mulheres fazem a política, mas seguem afastadas do mando. Esse descompasso ajuda a explicar a persistência de lógicas arcaicas e retrocessos orientados por valores machistas e masculinistas. A segurança pública — assim como a defesa nacional — permanece como um dos últimos redutos de uma autoridade tradicional que, incapaz de entregar resultados efetivos, sobrevive cada vez mais da performance, do medo e da exploração eleitoral da insegurança.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




