O dilema do preço de referência: buscar a soberania energética ou continuar como mero exportador de commodity
Mudança no cálculo dos royalties expõe disputa sobre soberania energética e pode redefinir o papel do Brasil na cadeia global do petróleo
247 - À primeira vista, o Artigo 15 da MP 1304 – aprovado pelo Congresso no mês passado - parece apenas ajustar uma fórmula técnica sobre royalties do petróleo. Mas, na prática, o governo Lula encara um dos dilemas mais estratégicos da agenda energética brasileira nos últimos anos: sancionar uma regra que aproxima o país das melhores práticas internacionais ou vetar um dispositivo que pode manter o Brasil, por mais uma década, preso ao papel de exportador de óleo bruto barato e importador de combustíveis caros.
Hoje, o preço de referência do petróleo — base do cálculo de royalties e participações especiais — é definido mensalmente pela Agência Nacional de Petróleo (ANP). A agência usa uma fórmula própria, criada para estimar o valor do barril nacional. O problema é que essa fórmula, segundo estudos independentes apresentados pela Refina Brasil, ficou sistematicamente abaixo das cotações internacionais e, se assim se mantiver, irá resultar em perdas superiores a R$ 100 bilhões em dez anos para União, estados e municípios.
Esses R$ 100 bilhões representam recursos que deveriam fortalecer a União, os Estados e os Municípios produtores, mas que acabam fluindo para empresas listadas em Wall Street, Xangai, Londres e outras bolsas ao redor do mundo.
Pelo texto aprovado no Congresso, essa metodologia finalmente deixaria de ser uma exceção brasileira. O cálculo passaria a considerar a média das cotações divulgadas por agências internacionais reconhecidas, como Argus e S&P Platts. Se essas publicações não existirem para um determinado tipo de petróleo, o governo aplicaria critérios da OCDE já previstos na legislação tributária. E, em último caso, usaria uma fórmula definida por decreto presidencial.
O Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) afirma que substituir o modelo de cálculo dos royalties vigente desde os anos 2000 pode fragilizar a eficiência do regime fiscal. Para a entidade, a alteração cria insegurança jurídica e ameaça investimentos no setor de óleo e gás.
A correção do cálculo, aparentemente burocrática, tem efeitos profundos. Para grandes produtoras, significa recolher 4% a mais em média do que já pagam, com impacto menor do que 1% em suas margens de lucro. Para o Brasil, isso significa uma arrecadação adicional de R$111 bilhões pelos próximos 10 anos e a possibilidade real de avançar rumo à autossuficiência no refino.
Para o setor de refino, é uma mudança estrutural do jogo e fortalece a industrialização do País. Hoje há um paradoxo que já marca o setor há anos. Como mostra o material técnico da Refina Brasil, o Brasil exporta óleo bruto barato e importa combustível caro — um movimento que pressiona a balança comercial e enfraquece a segurança energética. Em 2024, o país importou cerca de 600 mil barris por dia de derivados, mesmo sendo um dos maiores produtores de petróleo do mundo. O Brasil extrai hoje cerca de 5 milhões de barris de óleo e gás por dia, segundo a ANP, e figura entre os três países mais atrativos do planeta para exploração, ao lado de EUA e Guiana — um contraste que amplia ainda mais o paradoxo da dependência de combustíveis importados.
Não por acaso, uma mesma produtora muitas vezes prefere vender óleo africano para as refinarias independentes no Brasil enquanto exporta o óleo extraído aqui. O resultado é um contrassenso: o combustível fica mais caro para o consumidor brasileiro, enquanto países como China, Índia e outros acabam recebendo um produto mais barato — na prática, um subsídio indireto bancado pelo Brasil.
Refinarias privadas, que poderiam ampliar a oferta de combustíveis, relatam escassez de petróleo disponível no mercado interno, já que grande parte da produção nacional é direcionada à exportação. Caso haja essa mudança, o setor passaria por uma transformação estrutural significativa. A justa precificação representaria maior oferta, menor necessidade de importação, maior rentabilidade, expansão do parque de refino, geração de emprego e renda.
Para Estados e municípios, representa a recuperação de receitas previstas em lei. Para analistas de mercado, é um reforço fiscal não trivial: a XP Investimentos calcula que a nova regra pode gerar até R$ 7,5 bilhões por ano em arrecadação adicional — sem aumentar impostos. A Ompetro, entidade que representa os municípios produtores de petróleo, estima que só em 2024 a distorção retirou R$ 1,6 bilhão das cidades da região da Bacia de Campos.
Há também um efeito tributário pouco discutido. Segundo análises técnicas entregues ao governo, multinacionais usam o PRP subavaliado para reduzir impostos no Brasil. O petróleo produzido aqui é vendido, no papel, para filiais da própria empresa em paraísos fiscais, usando o PRP como referência. Assim, diminui-se a base de cálculo de IR e CSLL. Só depois, já fora da jurisdição brasileira, o mesmo petróleo é revendido ao destino final pelo preço real de mercado — garantindo às empresas a diferença econômica que deixou de ser tributada no país.
Mas o impacto vai além dessa criatividade tributária. A metodologia atual cria um incentivo econômico que distorce toda a cadeia: exportar petróleo torna-se mais vantajoso do que vender internamente, porque o preço subestimado reduz IRPJ, CSLL, royalties e participações especiais.
Um parecer jurídico entregue pela Barral Parente Pinheiro Advogados afirma que esse cenário não é apenas economicamente problemático — é juridicamente insustentável. A Lei do Petróleo determina, desde 1997, que royalties devem ser calculados com base em “preços de mercado”. Como o PRP publicado pela ANP não segue esse critério, os atos podem ser considerados “eivados de vício” e passíveis de questionamento no Judiciário, inclusive com risco de ações retroativas por perdas federativas.
Governadores, prefeitos e entidades do setor já se mobilizaram para tentar evitar um veto presidencial. A Ompetro, organização que representa os municípios produtores de petróleo, chamou a sanção de “medida de responsabilidade fiscal e soberania energética” em carta enviada ao Planalto, argumentando que o Brasil não pode continuar transferindo riqueza nacional a acionistas estrangeiros enquanto municípios produtores lidam com queda de arrecadação e aumento de custos sociais. A Refina Brasil, em nota pública, diz que a correção do PRP é essencial para encerrar “uma lógica extrativista primária” que impede a expansão da capacidade de refino no país.
A decisão deixou de ser técnica e virou um teste de rumo: seguir exportando óleo bruto ou iniciar uma política que agregue valor e reduza a dependência de derivados. A sanção do Artigo 15 daria estabilidade e alinhamento internacional; o veto manteria uma distorção cara ao país e reforçaria o papel de mero fornecedor de commodities. O futuro do setor — e de receitas bilionárias — agora depende de um único gesto presidencial.



