Igor Fuser vê ofensiva de Trump contra México e Venezuela
Em entrevista à TV 247, professor analisa ataques ao México, cerco militar à Venezuela e alertas para o Brasil em meio à estratégia dos EUA
247 - O professor e analista internacional Igor Fuser avalia que a América Latina vive um momento de forte tensão e reorganização geopolítica, em que a pressão dos Estados Unidos se intensifica sobre governos que defendem maior soberania regional. Para ele, os recentes protestos violentos no México, o cerco militar à Venezuela e os ataques políticos contra o Brasil compõem um mesmo tabuleiro estratégico, que mira o enfraquecimento do chamado “sul global” e, em particular, da integração latino-americana.
Em entrevista à TV 247, Fuser descreve esse cenário como parte de uma ofensiva articulada pelo governo de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, apoiada por think tanks, oligarcas de mídia, ONGs e redes digitais. Segundo ele, trata-se de uma atualização das velhas práticas de intervenção norte-americana no continente, agora revestidas pela linguagem de “protestos espontâneos” e da retórica do combate ao narcotráfico e ao “narcoterrorismo”.
México: protesto “geração Z” como laboratório de guerra híbrida
Fuser começa a análise pelo México, país que estuda há décadas e conhece de perto. Ele lembra que, em pleno governo progressista de Claudia Sheinbaum — sucessora de Andrés Manuel López Obrador e detentora de um índice de aprovação em torno de 79%, “a chefe de Estado mais popular do mundo” segundo pesquisas citadas por ele —, surgiu de forma súbita uma grande manifestação apresentada como um levante da “geração Z”.
O professor relata que o protesto ocorreu em várias cidades mexicanas, mas teve epicentro no Zócalo, praça central da capital, em frente ao palácio presidencial. A convocação, explica, apareceu nas redes sob uma marca difusa de juventude, sem organização claramente identificável e com uma pauta vaga, “contra o governo, pelo fim do governo”, sem programa definido.
Em um dado momento, o ato deixou de ser apenas manifestação política para se transformar em confronto aberto. “Foi realmente um ataque violento contra o palácio”, resume Fuser, ao descrever como um grupo de cerca de 100 a 200 pessoas, munidas de objetos cortantes, artefatos de impacto e rojões de alto poder, avançou contra a guarda que protegia o prédio, derrubou barreiras e travou uma batalha que deixou aproximadamente 100 policiais e 20 manifestantes feridos.
Para o professor, não se tratou de um descontentamento social espontâneo. Ele destaca semanas de trabalho intenso nas redes sociais, com perfis falsos, manipulação algorítmica, vídeos curtos ao estilo de clipes pop, apelos emocionais dirigidos à juventude e a instrumentalização de problemas reais, como o alto desemprego entre jovens. “O México passou a ser retratado como um ‘narcoestado’, o que é completamente absurdo”, afirma, lembrando que o governo coopera com os EUA na extradição de chefes do narcotráfico.
Na leitura de Fuser, o episódio mexicano é um exemplo acabado de guerra híbrida: um movimento fabricado desde o início, sem base social orgânica, “com o objetivo de desgastar o governo legítimo de esquerda de Claudia Sheinbaum”. Ao contrário do Brasil de 2013 — onde, segundo ele, havia um movimento autêntico pelo passe livre, posteriormente capturado pela direita —, no México a operação já nasce inteiramente moldada por interesses externos.
Venezuela sob mira: porta-aviões, mortes no Caribe e o rótulo de “narcoestado”
Se o México é o laboratório da guerra híbrida nas ruas, a Venezuela é o alvo direto do poder militar norte-americano, na visão de Fuser. Ele chama atenção para a presença do maior porta-aviões dos Estados Unidos e de uma grande frota no Caribe, diante da costa venezuelana, algo que representaria cerca de 8% de toda a Marinha de Guerra norte-americana concentrada na região.
Segundo o professor, essa força tarefa tem promovido o afundamento de embarcações sob a alegação de combate ao narcotráfico, com cerca de 20 barcos destruídos e aproximadamente 75 mortos. “Ninguém sabe o nome de uma única pessoa dessas 75 que foram mortas dessa maneira”, denuncia, classificando as ações como “execuções extrajudiciais” praticadas sem transparência nem prestação de contas.
Fuser relaciona esse quadro ao discurso que rotula tanto o México como a Venezuela de “narcoestados”, narrativa adotada por figuras como o senador Marco Rubio. “Não se trata apenas de falar de narcoestado, mas de narcoterrorismo”, observa. Ao associar o tema das drogas ao terrorismo, explica, aciona-se um gatilho central na política externa norte-americana desde 11 de setembro de 2001: em nome da luta contra o terror, Washington se arroga o direito de intervir em qualquer parte do mundo, ignorando fronteiras e soberanias nacionais.
Nesse contexto, Nicolás Maduro passa a ser descrito como chefe de cartel, e o governo venezuelano é enquadrado como ameaça à segurança hemisférica. Fuser alerta que, embora não considere provável uma invasão terrestre de grande escala, não se pode descartar um ataque militar à Venezuela sob o pretexto do combate ao narcotráfico. Se isso ocorrer, afirma, haverá um “fato sem precedentes” na América do Sul, obrigando o Brasil a reagir com firmeza.
O Brasil no alvo: narcotráfico, “narcoterrorismo” e eleição de 2026
A narrativa do “narcoterrorismo”, insiste Fuser, não se limita a México e Venezuela. Para ele, a extrema direita brasileira já ensaia um discurso que associa o país a um narcoestado conivente com o crime organizado, abrindo espaço para justificar, no plano internacional, medidas de exceção.
Ele cita como exemplo recente a chacina no Rio de Janeiro, atribuída ao governo Cláudio Castro, seguida pela tentativa de equiparar facções criminosas a organizações terroristas. “As peças se encaixam perfeitamente”, diz o professor, ao vincular esse movimento interno à lógica global que busca transformar problemas de segurança pública em justificativa para ações de força, inclusive externas.
Nesse tabuleiro, o ano de 2026 aparece como ponto crucial. Fuser lembra que o Brasil é o principal elo entre a América Latina e o sul global, único país da região presente nos BRICS e com política externa que busca relações estratégicas com China, Rússia, países árabes, africanos e asiáticos. Do ponto de vista dos Estados Unidos, afirma, isso é visto como desafio a ser neutralizado.
De um lado, está a possibilidade de continuidade do atual projeto, com uma política externa soberana, multilateral e integradora. De outro, o retorno do bolsonarismo e de suas variantes, marcadas, segundo ele, pela “subserviência em relação aos Estados Unidos”. Fuser não acredita que Trump, atual presidente norte-americano, vá assistir passivamente a uma reedição do resultado de 2022 no Brasil. “Evidentemente, alguma coisa será feita, ou já está sendo feita”, adverte, mencionando como exemplo as recentes tarifas impostas contra o café brasileiro.
Tarifas, café e pressão econômica sobre o Brasil
Na entrevista, Fuser destaca o episódio em que o governo Trump anunciou a redução de tarifas para o café de países competidores do Brasil, como Colômbia e Vietnã, mantendo o mercado norte-americano praticamente fechado ao produto brasileiro — ainda que com leve redução da alíquota, de 50% para 40%. Na prática, o impacto econômico para o setor segue relevante.
Ele lembra que, pouco antes da medida, o clima parecia mais favorável após um encontro entre Trump e Lula, com sinais de distensão e expectativa de “acertos de bastidores”. A decisão sobre o café, no entanto, mostrou que o gesto diplomático não se traduziu em mudança estrutural na postura de Washington.
Fuser destaca que os Estados Unidos já não são o maior parceiro comercial do Brasil — superados pela China e pela União Europeia —, mas ainda ocupam posição central como investidores, com milhares de empresas instaladas no país. Por isso, avalia que o governo brasileiro precisa calibrar com cuidado sua resposta, equilibrando defesa da soberania com a preservação de interesses econômicos legítimos de setores empresariais.
Chile, Equador e Argentina: xadrez sul-americano em disputa
A ofensiva descrita por Fuser não se limita aos casos mais visíveis. Ele aponta que a América do Sul vive um movimento de “revanche direitista” em vários países, com impactos diretos na integração regional.
No Chile, menciona o resultado eleitoral mais recente, que indica a formação de um governo de extrema direita, deslocando o eixo político e enfraquecendo iniciativas de cooperação progressista que marcaram o ciclo anterior. Já no Equador, um plebiscito realizado sob um governo de direita trouxe um resultado inesperado: a derrota da proposta de reabrir bases militares dos Estados Unidos, em especial a base naval de Manta, fechada no período de Rafael Correa.
Para Fuser, o voto equatoriano mostra que, mesmo em ambientes governados pela direita, há resistência popular à presença militar norte-americana direta. “É uma batalha, um xadrez que se trava na América do Sul”, comenta, vendo nesses episódios tanto avanços quanto recuos no projeto de recolonização política e militar da região.
No caso argentino, ele enxerga um movimento ainda mais grave. O acordo de livre comércio com os EUA, anunciado por Buenos Aires, “passa por cima do Mercosul” e ameaça o próprio processo de integração econômica do Cone Sul. Na sua avaliação, a política do presidente Javier Milei transforma a Argentina em “ponta de lança do avanço dos Estados Unidos na América do Sul”, esvaziando o Mercosul e desmontando, passo a passo, o arcabouço de integração construído ao longo de décadas, com protagonismo brasileiro.
Doutrina Monroe atualizada e o alvo Brasil
Fuser amarra todos esses fios em uma hipótese central: a de que está em curso uma estratégia de “captura do hemisfério inteiro”, com a América Latina vista como fronteira prioritária de controle geopolítico pelos Estados Unidos, em reação à emergência do sul global e ao avanço da China e da Rússia.
Ele lembra que Donald Trump, atual presidente dos EUA, chegou a reafirmar a vigência da Doutrina Monroe — formulada no século XIX para justificar a supremacia norte-americana no continente. Agora, argumenta o professor, essa doutrina ganha nova forma, combinando guerra híbrida, pressão econômica, operações militares seletivas, campanhas de desinformação e cooptação de elites locais.
Nesse desenho, o Brasil ocupa posição singular: é o maior país da região, peça-chave dos BRICS e principal ponte latino-americana com o sul global. Por isso, diz Fuser, dificilmente Washington aceitará que Brasília mantenha, “tranquilamente”, uma política externa de afirmação soberana e de articulação com outros polos de poder fora da órbita norte-americana.
Entre a cautela diplomática e o risco de confronto aberto
Questionado sobre o que o Brasil deveria fazer diante do cerco à Venezuela e da escalada de tensões no Caribe, Fuser evita prescrever receitas prontas. Ele diz confiar na experiência de Lula e na capacidade estratégica de Celso Amorim. Na sua avaliação, o governo tem agido “de maneira muito correta” ao combinar firmeza política com cautela diplomática, levando em conta tanto a dimensão externa quanto as correlações internas de força.
Ele ressalta que não basta “bater na mesa” e desafiar o imperialismo norte-americano em discursos de efeito, se isso não se sustentar em termos de apoio interno, base social e equilíbrio econômico. É preciso considerar os interesses de empresários afetados por tarifas e retaliações, ao mesmo tempo em que se protegem os espaços de autonomia conquistados pela política externa brasileira.
Ainda assim, o professor adverte que a realidade internacional pode evoluir para cenários que escapam ao controle de Brasília. Um eventual ataque militar à Venezuela, sob o argumento de combate ao narcotráfico, representaria um divisor de águas na região e colocaria o Brasil diante da necessidade de uma resposta dura, tanto diplomática quanto política.
Ao final da conversa, Fuser deixa claro que vê a América Latina em um período de grande instabilidade, em que cada eleição, cada plebiscito, cada protesto de rua passa a ter peso geopolítico ampliado. O México, a Venezuela, o Brasil, o Chile, o Equador e a Argentina são peças de um tabuleiro em que se joga, ao mesmo tempo, o futuro da integração regional e o lugar do continente na disputa entre o sul global e a estratégia de reconquista comandada por Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos. Assista:



