HOME > Entrevistas

“O Rio vive uma política de matança, não de segurança”, afirma Jandira Feghali

Operação no Complexo do Alemão revela disputa sobre modelo de segurança pública e uso de confrontos letais no Rio de Janeiro

Jandira Feghali (Foto: Kayo Magalhaes/Câmara dos Deputados)

247 - A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirma que a recente chacina policial no Complexo do Alemão e na Penha, com ao menos 121 mortos, expõe sobretudo a opção do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), por uma lógica permanente de confronto. Para ela, o resultado da ação mostra que “não há uma política de segurança no Rio de Janeiro. Há uma política de matança”.

As declarações foram dadas em entrevista ao programa “Denise Assis convida”, na TV 247. Ao tratar da operação, Jandira concentrou sua análise na combinação entre chacina, ausência de ocupação efetiva de território, falta de políticas sociais e tentativa de enfraquecer o papel da Polícia Federal no combate ao crime organizado.

Chacina, controle de território e ausência de reocupação

Logo no início da conversa, a deputada relembra a dimensão da operação policial. “Nós vivenciamos uma chacina aqui na semana retrasada. Uma chacina que matou formalmente 117 pessoas e mais quatro policiais”, diz. Ela registra solidariedade às famílias dos policiais e dos mortos no Complexo do Alemão e destaca que há relatos de corpos ainda não localizados: “era o que estava no IML, mas muita gente dizendo que tem mais corpos lá dentro da mata, na Serra da Misericórdia”.

Jandira relata que esteve na região um dia e meio após a ação, numa quinta-feira de manhã, e que o domínio territorial seguia nas mãos da mesma facção criminosa. “O controle do território ainda era do Comando Vermelho”, afirma. A partir daí, ela questiona o sentido da operação: “Teve uma chacina na terça e na quinta de manhã o controle do território continuava sendo da mesma facção criminosa. Não há uma política de reocupação de território, não há uma política planejada para a inteligência funcionar e prender, né?”

Para a deputada, a escolha pela confrontação armada como eixo central da política de segurança leva sempre ao mesmo desfecho: “Obviamente, se você aposta no confronto, é tiro pra todo lado e todo mundo morre. Isso aí não tem e não tem como sair disso. Você entra no confronto para matar, vai matar e vai morrer. E é isso que nós vamos ter sempre como resultado da política continuada de chacinas aqui no estado do Rio de Janeiro.”

“Política de matança” e uso político da segurança

Na avaliação de Jandira, a operação não foi construída para solucionar o problema do crime organizado nas comunidades afetadas. Ela sustenta que houve motivação política ligada à popularidade do governador e à mudança da agenda pública. “Nós sabemos que essa motivação política de mudança de agenda, de crescimento de popularidade, foi o que motivou centralmente essa ação”, afirma.

Mais adiante, ao sintetizar seu diagnóstico, ela explicita o núcleo de sua crítica: “O que a gente pode diagnosticar muito claramente, é que não há uma política de segurança no Rio de Janeiro. Há uma política de matança. Isso não é política de segurança.” Segundo a deputada, após operações desse tipo, a estrutura do crime se recompõe: “Morreu o andar de baixo e já tem sucessor. Você tem alguma dúvida que a parte dali que estava envolvida já tem gente no lugar?”

Ela também rejeita a narrativa oficial de “sucesso” da ação, apontando a baixa eficácia em relação aos alvos que tinham mandado de prisão. “Sendo que desses que estavam com mandado de prisão, busque, busque a apreensão. Busca, nenhum foi preso dentro. Parece que dos 42 anunciados pelo MP, só dois. Pois é. Só dois. Todo o resto está solto. Se isso não é fracasso, o que é fracasso?”, questiona.

Famílias, juventude e a produção de vulnerabilidade

A deputada enfatiza que a política de confrontos recai principalmente sobre jovens das periferias e favelas, em contexto de falta de oportunidades. “A primeira abordagem é uma demanda assim absurda das mães, principalmente para que os jovens dessas comunidades tenham oportunidade”, relata. Ela aponta que o estado do Rio de Janeiro concentra alto desemprego juvenil e ausência de políticas estruturadas: “É o estado com maior número de jovens que não estudam e não trabalham e que não tem nenhuma perspectiva construída por esse governo. Então o que as mães mais pediam era queremos projeto para os nossos filhos, queremos oportunidade para os nossos filhos.”

Jandira narra casos concretos que viu no Instituto Médico-Legal (IML). Um deles é o de um jovem de 17 anos, morador de Cabo Frio: “Comemorou o aniversário de 17 anos na segunda-feira em Cabo Frio com a mãe e com a família. E na terça veio comemorar com a namorada que morava ali na região e morreu.” Outro caso é o de um adolescente de 14 anos, sobre o qual ela observa: “Mesmo esse menino de 14 anos estivesse envolvido, sinceramente, é o quê? Aviãozinho, entregador, comunicador de rádio, o que que ele é um menino de 14 anos. No Brasil não tem pena de morte.”

Ela qualifica a lógica em curso como incompatível com o que deveria ser uma política de segurança. “Você não pode construir a política de segurança em cima de chacina e confronto”, afirma. Em outro momento, resume o impacto para quem vive nas comunidades: “A população fica entre a opressão do crime e a opressão da polícia e a polícia não resolve o problema da população.”

Crítica à versão oficial e limites da perícia

Sobre o que ocorreu dentro da mata, Jandira destaca que a sociedade ainda não tem acesso a um relato completo, para além da versão oficial. “Nós não temos esse nível de detalhe porque é o que você diz, a única versão que aparece é a versão oficial do governador e do seu secretário de segurança”, afirma. Ela relata ter visto imagens que levantam suspeitas de execuções: “Pelo que a gente viu ali, teve uma imagem de dois irmãos abraçados dentro de uma casa com tiro na nuca atravessou um e outro. E que morreram os dois. Decapitação, tiro de costas, tiro a queima roupa, é a perícia que vai levantar.”

A deputada defende que a investigação técnica sobre a chacina não pode ficar restrita aos órgãos que participaram da operação. “Nós queríamos uma perícia independente. Por quê? Porque o Ministério Público fez parte da ação. Então, a perícia do Ministério Público não é a perícia independente, precisava ter a presença da Defensoria e da perícia da Polícia Federal junto, mas isso não foi permitido”, afirma.

Nesse contexto, ela considera relevante a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, de reunir provas e proteger as famílias que carregaram os corpos. “Ontem ele fez uma alteração no relatório para a Polícia Federal, mas assim mesmo ainda não preserva a autonomia da Polícia Federal, ainda esvazia suas funções, mas manteve a conceituação de terrorismo nas ações do crime organizado”, comenta, ao ligar a pauta da chacina à disputa legislativa em curso.

PF, projeto anti facção e disputa no Congresso

Ao tratar do debate sobre segurança pública no plano nacional, Jandira vincula a chacina no Alemão à tentativa de reorientar o marco legal do combate ao crime organizado. Ela lembra que o governo federal enviou ao Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança e, depois, o chamado projeto anti-facção. “O projeto anti-facção que o presidente Lula mandou para o Congresso Nacional depois da PEC estar tramitando há muito tempo, é um projeto de 36 páginas. [...] É um projeto que avança muito no enfrentamento, no combate, na investigação e na penalização e responsabilização do crime organizado”, diz.

Segundo a deputada, a extrema direita tenta distorcer o conteúdo do texto ao afirmar que ele “libera bandido”. Ela rebate: “A oposição, a extrema direita diz que o projeto é para liberar bandido, porque é só redução de pena. Isto não é verdade.” Jandira explica que o texto endurece penas para reincidentes e prevê apenas um ponto de redução para réu primário em situações específicas.

A parlamentar critica a escolha do relator na Câmara, o deputado Capitão Guilherme Derrite, então licenciado da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. “Foram buscar o deputado capitão Guilherme de Derrite, que exercia a função da Secretaria de Segurança Pública para relatar esse projeto. Isso não é por acaso”, avalia. Em sua leitura, as mudanças introduzidas pelo relator têm dois eixos: incluir o conceito de terrorismo na legislação aplicada ao crime organizado e limitar a atuação da Polícia Federal.

Sobre a tentativa de enquadrar facções criminosas como terroristas, Jandira afirma: “Trazer este conceito de terrorismo para dentro do projeto, o objetivo central é abrir caminhos para a entrada de intervenção estrangeira no Brasil. Além disso, viola economicamente o Brasil. Muitas empresas não podem entrar em países que têm organizações terroristas.” Ela também alerta para o risco de subordinar a PF aos governos estaduais: “A segunda é que ele tentou colocar a Polícia Federal subordinada ao governo do estado. A Polícia Federal só investiga se o governador autorizar. Ora, não vai autorizar, né?”

Para a deputada, esse conjunto de iniciativas forma o que ela chama de “golpe parlamentar” contra a política de segurança que o governo federal pretende implementar. “Tão com essa determinação de manietar o governo e de tirar os recursos todos, tanto financeiro quanto da segurança pública, das mãos do governo”, resume.

Entre o confronto armado e a inteligência

Ao contrapor modelos de atuação, Jandira defende que o eixo de uma política de segurança eficaz deve estar na inteligência, na asfixia financeira e na ocupação planejada de territórios, articulada com políticas sociais. Ela cita operações recentes conduzidas em coordenação entre Receita Federal, Polícia Federal e governos estaduais como exemplo de outro caminho possível: “As operações que foram feitas junto com a Receita, a Polícia Federal, eles conseguiram fechar duas fábricas clandestinas de fuzil. [...] Eles conseguiram aprender 3,5 toneladas de droga, aprenderam muitas armas e prenderam 30 pessoas sem nenhum tiro. Sem nenhum tiro. Isso é uma ação inteligente, coordenada, planejada, que não só pegou quem atuava, mas pegou também estruturas do crime, recurso do crime.”

A deputada recupera também a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), apontando limites e aprendizados. “Eu fiquei me lembrando do projeto das UPPS, que era um projeto de ocupação de território, de fato, e não tinha essa matança para ocupar o território”, observa. Para ela, o modelo fracassou porque foi sustentado apenas pela presença policial, sem a entrada de políticas públicas mais amplas: “Fracassou porque só entrou a polícia, não entrou o resto. Não entraram as outras políticas de emprego, de educação, de esporte, de cultura. Entrou só a polícia.”

Jandira sintetiza sua proposta em duas frentes combinadas: mudança de concepção e mudança de governo no estado. “Há que se ter uma perspectiva diferenciada, primeiro trocar essa esse conceito de segurança, isso significa trocar governo, trocar de campo. E segundo, ter uma política de segurança efetiva que junte políticas estruturantes da vida das pessoas com políticas de ocupação de território.”

Desigualdade histórica e base social da violência

Ao tratar das raízes do problema, a deputada relaciona o mapa da violência à formação histórica do Brasil, à escravidão e à desigualdade racial e de classe. Ela afirma que a população das favelas e periferias é majoritariamente trabalhadora, marcada por exclusão sistemática de direitos. “Nós estamos falando de uma população majoritariamente trabalhadora, que foi explorada a vida inteira e que nunca teve a mesma perspectiva da classe média ou da elite desse país de ter os mesmos direitos. Há uma desigualdade profunda, há uma desigualdade profunda no Brasil.”

Nesse quadro, as mulheres negras aparecem, segundo Jandira, na base da pirâmide social: “As mulheres negras estão na base dessa pirâmide e são essas mulheres que são violentadas e que choram a perda dos seus filhos. São duas vezes vitimadas como mulheres.” A deputada reforça que, sem políticas de emprego qualificado, educação, cultura e esporte, os jovens de áreas pobres seguem expostos à cooptação por organizações criminosas.

Disputa aberta sobre o rumo da segurança pública

Ao final, Jandira vincula a chacina no Complexo do Alemão, o debate sobre o projeto anti-facção e a tentativa de subordinar a Polícia Federal a uma disputa mais ampla sobre qual modelo de segurança prevalecerá no país. De um lado, ela identifica a “política de matança”, baseada em operações letais sucessivas que não alteram o controle territorial do crime nem enfrentam suas fontes financeiras. De outro, defende uma política fundada em inteligência, integração federativa, ocupação planejada de territórios e políticas sociais dirigidas à juventude das periferias.

“A política não pode ser a do confronto permanente, que é o que esse governo faz”, afirma. Em sua avaliação, a maneira como o Congresso tratará o projeto antifacção e a autonomia da Polícia Federal será decisiva para definir se o país continuará a reproduzir chacinas como a do Alemão ou se avançará para um modelo que combine repressão qualificada ao crime organizado e ampliação de direitos para as populações mais atingidas pela violência. Assista: 

Artigos Relacionados