Nathalia Urban por Milenna Saraiva

Esta seção é dedicada à memória da jornalista Nathalia Urban, internacionalista e pioneira do Sul Global

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China apresenta documento estratégico que redefine sua política para a América Latina e Caribe

Pequim projeta nova fase de cooperação em desenvolvimento, segurança, inovação e integração política, reforçando o papel da região no Sul Global

Registro histórico de chefes de estado e ministros na Cerimônia de Abertura do Fórum China-Celac, em Pequim. Lula está ao centro, ao lado de Xi Jinping (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

247 – A China divulgou um amplo e minucioso documento de política externa dedicado à América Latina e ao Caribe, definindo diretrizes para a próxima etapa das relações com a região. O texto, que atualiza documentos anteriores publicados em 2008 e 2016, aprofunda a visão chinesa sobre diplomacia, economia, inovação, segurança, cultura e integração entre povos.

Segundo o documento, Pequim vê a América Latina e o Caribe como um pilar estratégico do Sul Global, com papel decisivo na construção de um mundo multipolar “igualitário e ordenado”. O texto associa a cooperação sino-latino-americana a um projeto mais amplo: a formação de uma comunidade com futuro compartilhado, conceito central da diplomacia do presidente Xi Jinping.

Uma região enfatizada como força geopolítica e civilizacional

O documento dedica suas primeiras seções a caracterizar a América Latina e o Caribe como uma região com “longa tradição de independência e busca pela unidade”, papel crescente na governança global e potencial para contribuir decisivamente com o equilíbrio internacional.

A China enfatiza que, apesar da distância geográfica, “os laços históricos entre os povos já criaram raízes profundas”, destacando que o relacionamento deixou de ser periférico para assumir caráter estratégico e estrutural.

O texto observa ainda que as transformações globais, o declínio da hegemonia unipolar e a ascensão do Sul Global abrem espaço para uma aproximação ainda mais intensa entre Pequim e os governos latino-americanos.

Cinco programas estruturantes: o novo mapa da parceria China–ALC

A parte central do documento descreve um conjunto de diretrizes dividido em cinco grandes programas, que se desdobram em dezenas de áreas de cooperação.

1) Programa de Solidariedade

A China reafirma que a relação com a América Latina deve manter-se guiada por igualdade, benefício mútuo e não interferência nos assuntos internos.

Pequim destaca que a base política indispensável para relações bilaterais é o reconhecimento do princípio de Uma Só China, reforçando oposição a movimentos de “independência de Taiwan”.

O texto detalha diversos mecanismos de diálogo de alto nível, envolvendo governos, parlamentos e partidos políticos, visando coordenação estratégica e apoio mútuo em temas sensíveis, como soberania, desenvolvimento e segurança.

2) Programa de Desenvolvimento

É o eixo mais extenso do documento e concentra as diretrizes econômicas e tecnológicas.

Entre os compromissos, destacam-se:

  •  Expansão da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) na região.
  •  Aumento do comércio e estímulo a produtos de maior valor agregado.
  •  Fortalecimento de cadeias produtivas, infraestrutura, energia e industrialização.
  •  Cooperação intensa em setores como petróleo, gás, energias renováveis, hidrogênio, energia nuclear de uso pacífico e mineração.
  •  Propostas de liquidação comercial em moedas locais e ampliação do uso do renminbi (RMB).
  •  Parcerias tecnológicas em agricultura, biotecnologia, inteligência artificial, novas energias, aviação e aeroespacial.

Pequim também propõe intensificar a cooperação financeira por meio de fundos, empréstimos concessionais e interação entre bancos centrais.

3) Programa de Civilização

Um dos trechos mais simbólicos do documento.
A China afirma que deseja promover “igualdade, aprendizado mútuo e inclusão entre civilizações”, expandindo a cooperação em cultura, educação, patrimônio arqueológico, intercâmbio acadêmico e ensino da língua chinesa.

Há propostas concretas, como:

  •  Criação de centros de inovação alimentar e laboratórios conjuntos.
  •  Cooperação em proteção de sítios arqueológicos e restituição de relíquias culturais.
  •  Expansão dos Institutos Confúcio e programas de capacitação como o Luban Workshop.
  •  Fortalecimento de intercâmbios na imprensa, rádio, cinema e televisão.

4) Programa de Paz

O documento defende a implementação conjunta da Iniciativa de Segurança Global, condena a “política de intimidação unilateral” e reafirma o apoio à América Latina e Caribe como Zona de Paz.

A cooperação em segurança inclui:

  •  Combate ao terrorismo, crimes transnacionais e narcotráfico.
  •  Intercâmbio entre forças policiais, judiciais e militares.
  •  Aprofundamento de programas anticorrupção e mecanismos de recuperação de ativos.
  •  Reforço na governança cibernética e rejeição ao uso da internet para ingerência externa.

A China também propõe ampliar a participação latino-americana em exercícios de manutenção da paz da ONU e no Fórum Xiangshan de Pequim.

5) Programa de Conectividade entre Pessoas

O documento dá grande destaque ao fortalecimento de intercâmbios humanos e sociais, incluindo:

  •  Cooperação em redução da pobreza e políticas de bem-estar.
  •  Parcerias em saúde pública, prevenção de doenças e medicina tradicional.
  •  Programas de juventude, intercâmbios culturais e diálogo entre governos locais.
  •  Expansão do turismo, com estímulo à abertura de novas rotas aéreas.
  •  Proteção de consumidores e facilitação de viagens bilaterais.

O texto destaca a importância de aproximar as sociedades e aprofundar a compreensão entre os povos.

Reformar a ordem global: o posicionamento estratégico mais sensível

Outro eixo crucial do documento é o compromisso de China e América Latina em reformar o sistema de governança global, com ênfase em:

  •  Fortalecimento da ONU como centro do sistema internacional.
  •  Rejeição às políticas de “desacoplamento” e protecionismo.
  •  Aumentar o peso do Sul Global no FMI, Banco Mundial, G20 e outros organismos.
  •  Defesa do multilateralismo e do comércio livre.
  •  Reformas na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Pequim deixa claro que a relação China–ALC não é “contra terceiros”, mas tampouco deve ser “subjugada a terceiros”, em referência implícita às pressões geopolíticas dos Estados Unidos.

Por que este documento importa?

O texto revela que a China está se preparando para uma nova etapa de presença econômica, tecnológica e política na América Latina e Caribe, num contexto em que:

  •  A disputa entre China e EUA cresce.
  •  Os países latino-americanos buscam diversificar parceiros e aumentar a autonomia estratégica.
  •  O Sul Global assume protagonismo na transição para uma ordem multipolar.

A profundidade e o detalhamento do documento indicam que Pequim enxerga a região como um dos pilares de sua inserção internacional nas próximas décadas.

Conclusão: um marco na diplomacia do século XXI

O documento sobre a América Latina e o Caribe representa um dos textos mais completos já produzidos pela China sobre sua política regional.
Com quase duas dezenas de áreas temáticas e dezenas de compromissos práticos, ele estabelece uma arquitetura de cooperação de longo prazo e coloca a relação sino-latino-americana no centro da estratégia global chinesa.

Para a América Latina, pode significar:

  •  Novas oportunidades de industrialização.
  •  Avanços em infraestrutura, ciência e tecnologia.
  •  Alternativas financeiras ao sistema tradicional dominado pelos EUA.
  •  Integração Sul–Sul sem precedentes.

A partir desse documento, Pequim sinaliza que pretende aprofundar, acelerar e sofisticar a cooperação regional, inserindo a América Latina em seu projeto global de modernização e multipolaridade.

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