Vijay Prashad vê novo equilíbrio no Sul Global diante da pressão dos Estados Unidos
Intelectual indiano exalta ressurgimento do Sul Global e convoca juventude a buscar propósito para além de “ficar rico”
247 – O intelectual de esquerda, escritor e historiador Vijay Prashad, diretor executivo do Tricontinental Institute for Social Research, descreveu o momento atual como o de um “novo equilíbrio” em formação no Sul Global, ao mesmo tempo em que o chamado “norte coletivo” reage com punições e tentativas de conter essa mudança.
As declarações foram feitas em uma ampla entrevista ao programa “The Point”, apresentado por Lucin, gravado em Xangai e disponível no YouTube com o título “Get rich? The Global South has an answer”. Ao longo da conversa, Prashad falou sobre China, Índia, Rússia, América Latina, juventude, cultura e o papel do presidente Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, na tentativa de frear a autonomia dos países em desenvolvimento.
Um casaco, uma enchente e o renascimento de uma cidade
A entrevista começa com uma história aparentemente simples: o casaco usado por Vijay Prashad. Ele conta que a peça foi comprada em uma pequena cidade do sudeste da China, onde um projeto de revitalização rural usa o futebol como motor de desenvolvimento. Há campo de jogo, partidas gratuitas, celebrações culturais no intervalo, roupas e produtos locais expostos.
No último verão, porém, uma enchente catastrófica cobriu o gramado e a cidade com “3 ou 4 metros de água lamacenta”. Prashad relata que assistiu a vídeos do desastre, mas, quando as águas recuaram, o Exército de Libertação Popular entrou na cidade, limpou tudo e, “em 28 dias, o campo estava pronto, a infraestrutura reconstruída, as lojas abertas”.
Ele lembra da visita a uma lojista, Lan Lan, cujo estabelecimento ficou debaixo d’água e que, mesmo assim, o recebeu com entusiasmo. Em vez de desespero, ela mostrava orgulho ao dizer: “Esta é a minha loja, estas são as minhas coisas”. Foi ali que ele viu o casaco com a imagem de uma fênix e decidiu comprar:
“Quando vi isso na prateleira, pensei: ‘Isto é meu. Por quê? Porque é uma fênix que se ergue das cinzas. Como a cidade dela. É uma fênix. É como o Sul Global. É como a China.’”
Para o historiador, a fênix simboliza países que sofreram “um século de humilhação, terras tomadas, colonização japonesa, Hong Kong nas mãos britânicas” e que, ainda assim, “estão se levantando das cinzas”.
O “novo humor” do Sul Global e a reação do norte
Prashad fala em “novo humor” (new mood) para descrever o que ocorre hoje nos países em desenvolvimento. Ele evita chamar de “grande transformação”, mas insiste que há algo real, palpável, que se manifesta em governos e sociedades do Sul Global.
Um dos exemplos mais contundentes, segundo ele, ocorreu na Assembleia Geral da ONU, com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro. Diante dos líderes do norte global, Petro fez um discurso duríssimo:
“Ele diz: ‘Vocês são cúmplices do genocídio.’ E cita nomes. É muito direto. Ele diz: ‘Foi isso que vocês fizeram.’”
Prashad relata que “Mr. Trump levou para o lado pessoal” e, em resposta, “disse que não iria renovar o visto” do presidente colombiano. Petro, porém, respondeu com desdém, conta o entrevistado:
“Ele foi para fora do prédio da ONU, em Nova York, ficou ao lado de Roger Waters, do Pink Floyd, e disse: ‘Eu não me importo. Eu tenho Bogotá. Não preciso vir aqui. Não preciso implorar por um visto.’”
Para Prashad, esse gesto sintetiza o novo clima: um líder latino-americano que diz ao norte que não precisa de sua aprovação. Ao mesmo tempo, ele observa que o presidente Donald Trump e o norte global entenderam essa mudança – e passaram a retaliar.
Malásia, Coreia do Sul e a política de punição
Outro caso citado por Vijay Prashad é o da Malásia, sob o governo de Anwar Ibrahim. Segundo ele, o país tenta “estabelecer um pouco de independência”, tanto na defesa da Palestina – com a população “quase 100% ao lado dos palestinos” – quanto no debate sobre desenvolvimento e exportações.
Prashad afirma que Trump foi à região para a cúpula da ASEAN, mas, na prática, buscava um encontro bilateral para “punir” o premiê malaio:
“Ele extrai de Anwar Ibrahim coisas completamente inesperadas. Ninguém esperava o ‘acordo’ que Trump conseguiu.”
Em seguida, o historiador cita a Coreia do Sul, onde a população recentemente impediu a lei marcial e colocou um ex-presidente na prisão. Ainda assim, o país continua fortemente dependente dos Estados Unidos.
“Trump vai até lá e extorque 85% das reservas externas da Coreia do Sul de volta para os Estados Unidos, punindo esses países.”
Na leitura de Prashad, há um padrão: surge um “novo humor” no Sul Global – em governos e nas ruas – e o norte reage com sanções, chantagem financeira e pressão militar para “apagar as luzes” dessa rebeldia.
“Precisamos de um novo equilíbrio”
Questionado sobre o futuro desse “novo humor”, Vijay Prashad recorre a Simón Bolívar para falar da necessidade de um “novo equilíbrio” entre norte e sul:
“Nós precisamos de um equilíbrio. As coisas estão fora de controle. Essa nova Guerra Fria, o ataque de Mr. Trump contra a China em particular… Não é um equilíbrio.”
Ele acredita que, nos próximos cinco a dez anos, blocos regionais e multilaterais como a Organização para a Cooperação de Xangai e os BRICS vão fortalecer mecanismos alternativos de comércio e desenvolvimento, reduzindo a dependência em relação ao Ocidente.
Com a Europa comprometendo 5% de seu PIB em gastos militares e enfrentando alta nos preços de energia, Prashad prevê queda na capacidade de consumo europeu, o que empurrará África, Ásia e América Latina a intensificar o comércio entre si, especialmente em nível regional.
“Os países vão tentar organizar seu comércio e seu desenvolvimento de forma que não estejam inteiramente orientados para o Ocidente.”
China, Índia e o papel de Putin
Um dos pontos centrais da entrevista é a relação China–Índia e o futuro da Ásia. Prashad afirma que é “irracional” que Índia, Paquistão e China mantenham conflitos que travam a integração econômica do continente, já que todas essas economias poderiam se beneficiar do comércio mútuo.
Ele lembra que China e Rússia resolveram rapidamente suas disputas fronteiriças “em um piscar de olhos”, graças à vontade política, e projeta algo semelhante para Índia e China. Nesse contexto, destaca o papel do presidente russo Vladimir Putin como mediador:
“Quando Mr. Putin for à Índia, ele deveria propor uma cúpula trilateral com o presidente Xi Jinping, o primeiro-ministro Narendra Modi e ele próprio, provavelmente em algum lugar do leste russo, onde eles se sentem e conversem sobre o futuro da Ásia.”
Para Prashad, a China está às vésperas de um novo plano quinquenal e precisa definir “qual é o lugar da Índia, qual o papel da ASEAN” nesse horizonte de 50 anos. Ele diz que gostaria de ver a Índia com “um papel maior” na Ásia idealizada por China e Rússia e, mais adiante, incluir Indonésia, Paquistão, Bangladesh e outros países que não integram pactos de segurança liderados pelos EUA, como Japão e Coreia do Sul.
Juventude, propósito e a cultura do “ficar rico”
Na segunda metade da entrevista, Vijay Prashad é convidado a falar sobre juventude – inclusive a partir de uma provocação pessoal, quando a apresentadora menciona que o filho dele diz ter como objetivo “ficar rico”.
Prashad reconhece que jovens de países como Nepal, Bangladesh, Índia, Malauí, Senegal, Equador, Uruguai, Brasil ou Colômbia vivem cercados por incertezas e buscam imaginar “como será o amanhã”. Ele considera que, em muitos desses lugares, à medida que as pessoas deixam a pobreza extrema, suas aspirações crescem – mas, em sociedades orientadas pelo capitalismo, essa aspiração tende a se reduzir a dinheiro e fama:
“Se essas forem as únicas coordenadas da aspiração, então o seu propósito é ficar famoso, ganhar dinheiro de forma vazia. ‘Só quero ganhar dinheiro. Não me importo como. Não me importo com o tipo de fama, só quero ser famoso’.”
Ele critica também versões religiosas que reforçam essa lógica, como o chamado “evangelho da prosperidade”:
“É como se fosse dito: se você ficar rico, Deus está feliz com você. Isso não é um propósito cultural real.”
Para o intelectual, a pergunta central que os jovens deveriam se fazer é: “Qual é o seu propósito na vida?” Ou ainda: que marca você quer deixar no mundo, como quer que seus filhos se lembrem de você?
Pachchan: mais que reputação, reconhecimento social
Vijay Prashad recorre a um conceito do hindi para aprofundar essa reflexão: pachchan, palavra que ele considera “mais rica do que reputação”:
“Pachchan significa: como você me reconhece? Como você me vê? Você me vê como alguém que empurra as pessoas para fora do caminho para ficar rico e famoso, ou como alguém que reúne pessoas para resolver problemas em comum?”
Ele questiona que tipo de figura a sociedade escolhe respeitar: o indivíduo que passa por cima dos outros ou aquele que se dedica a resolver problemas coletivos. Nesse ponto, faz uma ponte direta com o desafio interno do Sul Global ao buscar um “novo equilíbrio”: reaprender a valorizar quem constrói comunidade e não apenas quem acumula riqueza ou visibilidade.
História, cultura vermelha e o risco da falta de sentido
Ao falar sobre a China, Prashad insiste que o país ainda precisa lidar com o risco de “esquecer” a própria história. Ele observa que, antes da Revolução Chinesa, “as pessoas no campo caminhavam com os olhos voltados para o chão” por causa das desigualdades extremas; hoje, “olham para cima”, com orgulho, algo que ele considera uma herança direta da revolução.
Para não deixar essa memória se perder, ele vê como positiva a revitalização da chamada “cultura vermelha” – museus antifascistas, por exemplo, que oferecem “uma educação muito aguda de uma história que não pode ser esquecida”.
“Você não quer ter uma sociedade de pessoas sem propósito, porque sabemos no que isso levou as sociedades ocidentais: drogas, desespero. Quase um milhão de pessoas no mundo morrem de solidão todos os anos. Não queremos isso.”
Jovens, culpa climática e ação coletiva
A apresentadora lembra que muitos jovens já carregam um sentimento de culpa por causa da crise climática e da destruição ambiental, o que aumenta o peso psicológico. Não seria demais pedir que ainda saiam para “ajudar os outros”?
Prashad responde que a ação coletiva não é apenas para “ajudar o outro”, mas também para ajudar a si mesmo, construindo comunidade e combatendo a solidão:
“Um dos antídotos para o desespero é reunir pessoas e fazer coisas.”
Ele dá um exemplo simples: organizar, com amigos, uma manhã para recolher o lixo da própria rua, envolvendo a vizinhança. Não se trata de esperar o Estado ou a prefeitura, mas de agir diretamente – criando laços, sentido e responsabilidade compartilhada.
Durante a pandemia, lembra o historiador, foi isso que manteve vivas muitas comunidades em lugares como Kerala, na Índia, e em várias partes da China: jovens e comitês locais que iam de porta em porta perguntar o que as pessoas precisavam, levar remédios, organizar redes de cuidado.
Ele cita, por exemplo, uma jovem de 21 anos em Trivandrum, capital de Kerala, que participava de uma organização de estudantes e juventude. Ela e seus colegas bateram de porta em porta com pranchetas, máscaras e uma pergunta simples: “Do que você precisa?” Após a pandemia, essa jovem foi eleita prefeita da cidade – não porque buscava fama, mas porque os moradores reconheceram seu compromisso com o bem comum.
“Reúnam seus amigos e resolvam os problemas”
Ao final da entrevista, Vijay Prashad dirige uma mensagem direta aos jovens do Sul Global – de Quito a Montevidéu, de Bogotá a São Paulo, de Katmandu a Daca:
“Você vive em um lugar onde há problemas por todos os lados. Reúna seus amigos e vá resolver os problemas. Coisas simples, como organizar uma manhã para recolher o lixo da sua própria rua.”
Para ele, essa disposição de agir coletivamente, e não apenas de consumir, é a chave para romper o ciclo de individualismo e solidão que domina tantas sociedades. Mais do que buscar apenas “ficar rico” ou “ser famoso”, seu convite é para que a juventude reencontre propósito, construa comunidade e participe ativamente da construção do novo equilíbrio que está emergindo no Sul Global.





