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Ex-juíza relata agressão de Moro e denuncia máfia na justiça

Ao analisar a violência da Lava Jato, a ex-juíza é categórica ao falar em organização criminosa. Assista à entrevista na TV 247

Luciana Bauer e Sergio Moro (Foto: Divulgação | ABR)

247 - A ex-juíza federal Luciana Bauer relatou ter sido fisicamente agredida por Sergio Moro quando ele atuava na 13ª Vara Federal de Curitiba, no auge da Operação Lava Jato. Ela descreve o que chama de “entidade mafiosa” instalada na vara da Lava Jato e na estrutura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que, segundo afirma, perseguiu quem tentou denunciar irregularidades e até hoje resiste a rever seus próprios erros.

As declarações foram dadas em entrevista ao jornalista Joaquim de Carvalho, na TV 247. Bauer fala como “vítima de lawfare” e diz só se sentir segura por não ser mais juíza e estar “a 8 mil quilômetros de distância de Curitiba”, nos Estados Unidos. 

Ela afirma que a operação de busca e apreensão realizada recentemente na vara federal da Lava Jato abriu uma fresta para que episódios até então silenciados venham à tona.

A ex-magistrada ressalta a dificuldade emocional de revisitar o próprio caso. “Eu adquiri, por exemplo, taquicardia quando eu falo do meu próprio caso”, conta, lembrando que recusou convites anteriores para falar publicamente. Formada em direito, com atuação em direito climático e direitos humanos, ela reforça que, naquele momento, não se vê como especialista, mas como sobrevivente: “Hoje aqui eu tô diante de vocês como uma vítima do lawfare”.

Bauer foi juíza federal por mais de 20 anos, quase sempre na área previdenciária. Antes da aprovação no concurso, trabalhou como funcionária da Justiça Federal, o que lhe deu familiaridade com o sistema eletrônico de processos. Ela diz ter “memória fotográfica” e afirma que sempre levou o juramento à Constituição ao pé da letra. 

Foi em um certo plantão judicial que ela diz ter testemunhado os primeiros sinais da engrenagem que hoje chama de “entidade mafiosa”. No sistema, encontrou um habeas corpus pendente de cumprimento. Segundo Bauer, duas servidoras ligadas à 13ª Vara — identificadas como Flávia Maceno e Vanise — tentaram convencê-la a não expedir alvará. Ela relata que ouviu justificativas de que o investigado, ligado à Petrobras, “tinha que continuar preso” porque estaria prestes a firmar delação e que o Ministério Público Federal mandaria outro processo no dia seguinte, tornando inútil uma eventual soltura.

A juíza conta que não aceitou o argumento e ordenou a libertação do preso, cumprindo a decisão de instância superior. “Eu disse: ‘Não, não interessa. Você não é o ministro do STJ, você simplesmente cumpre’”, relata. Mais tarde, ao revisar os processos antes de encerrar o plantão, percebeu que a ordem de soltura havia desaparecido do sistema. “Eu vi que foi apagado”, afirma, classificando o episódio como crime e dizendo que a prática de “esconder habeas corpus” seria parte de um método para manter presos sob pressão para delatar.

É nesse contexto que Bauer descreve a cena que define como um divisor de águas em sua vida. Segundo ela, após confrontar a vara, foi abordada por Sergio Moro dentro de um elevador reservado a magistrados. 

“Assim que fechou o elevador, ele segurou a minha garganta”, afirma. Questionada pelo entrevistador, ela detalha: “Ele segurou minha garganta com a mão, como se fosse enforcar você. Falou o quê? ‘Fica quieta, fica quieta, entendeu?’”.

A ex-juíza entrou em estado de choque. Mãe recente, contou que o impacto físico e emocional foi imediato: “Eu era uma pessoa que recentemente tinha tido um filho e o meu leite secou”. 

Segundo ela, a violência partiu de um colega que até então era tratado como “herói” dentro e fora da magistratura, o que aumentou o sentimento de isolamento. “Eu não tive nem coragem de pedir vídeo na época pra direção do foro, porque você sofre uma violência assim… eu não falei nem pras minhas melhores amigas, ninguém ia acreditar”, afirma.

Sem confiar nas instâncias internas de controle, Bauer procurou um magistrado de quem era próxima: o ministro Teori Zavascki, então integrante do Supremo Tribunal Federal (STF). 

Emocionada, ela conta que praticamente não conseguia falar, apenas chorar, e ouviu do ministro: “Não se preocupa, só fala comigo, não fala para mais ninguém”. 

Pouco tempo depois, Teori morreu em um acidente aéreo em Paraty. “Ele morreu em janeiro”, lembra. A juíza também cita o assassinato do delegado federal que atuou no caso do ministro, meses depois, em Florianópolis, e diz ver na sequência uma “lógica mafiosa” que precisaria ser reexaminada.

Bauer relata que, enquanto tentava processar o episódio, passou a sentir-se vigiada. Em Curitiba, morando em uma casa onde sua biblioteca ocupava um grande janelão de frente para a rua, ela diz que via diariamente um carro da Polícia Federal passar em frente à residência. “Eu tinha sido ameaçada, eu não sabia se eu denunciava, se eu não denunciava. Eu fiquei totalmente com medo”, conta. Como resposta, decidiu comprar um carro blindado: “Uma juíza previdenciária comprou um carro blindado. É a prova que eu tenho”.

Ela afirma ter procurado diversos corregedores e juízes ligados à corregedoria do TRF-4 para relatar a situação dos alvarás apagados e outras irregularidades na 13ª Vara. Segundo Bauer, nenhuma providência efetiva foi tomada. “Ninguém fez nada”, resume, acrescentando que viu, ao longo do tempo, as mesmas pessoas se revezando em cargos estratégicos para “tapar buracos” ligados à Lava Jato.

A ex-juíza também afirma que o ambiente de hostilidade levou a um quadro de sofrimento psíquico profundo. De tão pressionada, chegou a considerar o suicídio: “Às vezes eu olhava pela janela… eu queria, tinha vontade de me jogar”, conta. Foi nesse momento que decidiu que, para sobreviver, precisaria abandonar a carreira. “Eu falei: ‘Não, eu vou escolher outro caminho para a minha vida e vou sair da justiça, porque a justiça não tem futuro’”, lembra, explicando que não suportava mais conviver em um tribunal que, em sua visão, aceitara a destruição de garantias fundamentais sem fazer uma autocrítica.

No plano estrutural, Bauer descreve uma cultura de “subserviência” no TRF-4, comparando o que viu na Lava Jato a práticas anteriores. Ela cita a ex-ministra Ellen Gracie, que, segundo sua avaliação, teria consolidado uma relação de alinhamento com um partido político ao conceder liminares em série em favor do governo Fernando Henrique Cardoso. Essa lógica de “vassalagem”, afirma, teria alimentado uma estrutura na qual magistrados buscariam “benesses” e promoções, em vez de defender a independência da Justiça.

Essa dinâmica, diz ela, se aprofundou quando Moro deixou a magistratura, em novembro de 2018. “Senão o Moro não teria pulado no outro dia, no dia seguinte, para o governo Bolsonaro”, critica, afirmando que a movimentação não escandalizou a maior parte dos colegas. Segundo Bauer, muitos viam na nomeação do ex-juiz um canal para defender interesses corporativos e aumento de subsídios. “O juiz não pode pensar só em subsídio. Onde é que tá a vergonha na cara de todo mundo?”, questiona.

Ao analisar a Lava Jato, a ex-juíza é categórica ao falar em organização criminosa. Ela lembra que relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), elaborado sob a condução do ministro Luis Felipe Salomão, apontou crimes envolvendo Moro, a juíza Gabriela Hardt e procuradores ligados à operação, incluindo uso da Justiça para fins políticos e pessoais. 

Bauer destaca ainda o caso dos cerca de R$ 6 bilhões que seriam destinados a uma fundação ligada à Lava Jato e pergunta quanto dinheiro teria sido arrancado de doleiros e presos mantidos sob pressão. 

“A Lava-Jato é o caso possivelmente mais tenebroso de fraude judicial do mundo, do mundo”, afirma.

Bauer acusa o sistema de ter normalizado práticas ilegais, como a ocultação de habeas corpus e o desrespeito a decisões do STF. “O nome é um tipo penal que se chama prevaricação, gente”, diz, ao se referir a varas que teriam ignorado a competência do Supremo para manter a operação em Curitiba. Ela também critica a forma como o TRF-4 tratou juízes que enfrentaram a Lava Jato, citando o caso de Eduardo Appio, afastado após conflitos com o grupo que, segundo ela, formou “um pacto com a extrema direita”.

A ex-juíza volta-se, então, ao relatório do CNJ que teria apontado crimes atribuídos a integrantes da Força Tarefa da Lava Jato e da 13ª Vara. Ela afirma que o documento “dorme há um ano e meio” na gaveta do procurador-geral da República. Para Bauer, o atraso configura afronta à Constituição. “Um procurador-geral da República não tem o direito constitucional de deixar um crime tão grave na sua gaveta. Isso é uma obscenidade”, declara.

Na entrevista, Bauer lança um apelo direto à categoria. “Onde é que tá a AJUFE que não pede esclarecimentos sobre o que aconteceu na 13ª Vara? Onde estão os juízes federais de bem desse país que não exigem que tudo seja esclarecido?”, pergunta. Ela defende que a resposta institucional esteja à altura do que considera ter sido um golpe contra a democracia, com a prisão e impedimento da candidatura de Lula. “Tem que ter, senão não é democracia”, afirma, ao pedir responsabilização de magistrados e desembargadores que, em sua visão, se beneficiaram do esquema.

A crítica de Bauer também alcança a influência de órgãos dos Estados Unidos na formação de juízes e procuradores brasileiros. Ela relata ter participado de cursos sobre provas digitais oferecidos por órgãos como o Departamento de Defesa, em parceria com tribunais brasileiros, nos quais o conteúdo seria definido inteiramente por autoridades norte-americanas. “Nós somos um poder soberano. A gente não pode mais formar juízes e promotores que simplesmente entram em um curso sem nenhum filtro do DOD”, argumenta, defendendo que escolas da magistratura retomem o controle da formação.

Ao tratar do conceito de “guerra híbrida”, Bauer afirma que a Lava Jato se encaixa nesse modelo, no qual instrumentos judiciais e midiáticos são usados para enfraquecer projetos políticos e econômicos. Ela lembra que, enquanto fazia mestrado nos Estados Unidos, viu a operação ser apresentada em salas de aula como “case de sucesso”, com Moro tratado como exemplo internacional de combate à corrupção. Para a ex-juíza, isso demonstra o “grau de psicopatia, de mentira” que teria sido repassado ao mundo sobre o que ocorria em Curitiba.

No plano pessoal, Bauer destaca a importância das redes de solidariedade para vítimas de violência e perseguição. Ela diz que só conseguiu reconstruir sua história depois de se aproximar de iniciativas como a rede “Lawfare Nunca Mais” e de movimentos sociais que acompanharam o período da prisão de Lula. “Eu quero dizer pras mulheres: achem as redes de apoio para denunciar. Eu achei a minha, que é a rede Lawfare nunca mais”, afirma, em apelo direto a quem sofre agressões, inclusive dentro de instituições de Estado.

A ex-juíza hoje atua como advogada, com foco em direito climático, atendendo empresas de porte médio e grande interessadas em atuação institucional nos Estados Unidos e no Brasil. Ela conta que refez a vida profissional após deixar a magistratura, mas admite que o passado ainda pesa. “Só pensar nisso, eu vou pensar que até hoje o Moro é senador e pode ser governador do Paraná… os procuradores da República que eram lava jatistas raiz tão assessorando o Gonet. Ou seja, o crime compensa, gente”, desabafa.

Ao longo da entrevista, Bauer recorre a duas frases que diz carregar como guia. A primeira é da carta enviada pelo papa Francisco a Lula, lembrada por ela como um mantra: “O bem vai vencer o mal”. A segunda vem do próprio presidente, no livro construído a partir de entrevistas na prisão: “A verdade vencerá”. Para a ex-juíza, essas ideias resumem o sentido de seu depoimento. “Eu saí da justiça porque eu tinha certeza que eu ia ser barbaramente punida. Eu quero justiça”, afirma, ao defender que o país passe a limpo o que considera “o maior erro judiciário do mundo”. Assista:

 

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