As quatro iniciativas globais refletem a resposta da China à crise da ordem internacional, afirma Martin Jacques
Intelectual britânico diz que propostas chinesas sinalizam o início de uma nova arquitetura global centrada no Sul Global
247 – As quatro grandes iniciativas globais lançadas pela China ao longo da última década representam uma resposta direta à gravidade da crise da ordem internacional surgida no pós-Segunda Guerra Mundial. A avaliação é do intelectual britânico Martin Jacques, que participou por vídeo da Global Times Annual Conference 2026, realizada em Pequim, sob o tema “Confiança na China: nova jornada, novas oportunidades”.
As declarações foram publicadas originalmente pelo Global Times, veículo que organizou a conferência, e integram a íntegra do discurso apresentado por Jacques durante o painel “Um país-civilização: por que a abordagem chinesa é a mais viável”.
Uma política externa original e enraizada na história chinesa
Segundo Martin Jacques, desde 2012, com o lançamento da Iniciativa do Cinturão e Rota, a China passou a desenvolver uma política externa “muito criativa, distinta e proativa”, profundamente enraizada em sua história e em suas tradições.
“As quatro iniciativas globais — a Iniciativa de Desenvolvimento Global (2021), a Iniciativa de Segurança Global (2022), a Iniciativa de Civilização Global (2023) e a Iniciativa de Governança Global (2025) — são um resumo articulado e uma declaração da política externa chinesa à medida que ela evoluiu”, afirmou.
Para o intelectual, essas propostas não surgem de forma isolada, mas como resposta a um contexto histórico marcado pela erosão progressiva da ordem internacional construída após 1945.
Crise da ordem pós-guerra e o papel dos Estados Unidos
Jacques destacou que, já em 2021, tornava-se evidente que a ordem global do pós-guerra estava sob crescente pressão, especialmente devido às tentativas dos Estados Unidos de conter o desenvolvimento econômico da China.
“Ficou claro que a ordem global do pós-1945 estava sendo cada vez mais pressionada, à medida que os Estados Unidos tentavam minar e bloquear o desenvolvimento econômico da China, restringindo o comércio e a transferência de tecnologia”, disse.
Segundo ele, esse processo foi acelerado durante o governo do presidente Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, especialmente com a defesa de tarifas e o abandono do multilateralismo em 2025.
Em retrospecto histórico, Jacques avalia que a ordem internacional começou a se desintegrar lentamente após a crise financeira ocidental de 2008.
“A ordem do pós-guerra está morrendo e uma nova ordem, ainda em sua infância, começa a emergir, com a China em seu centro”, afirmou.
As iniciativas como resposta estratégica da China
Nesse cenário, Jacques sustenta que se tornou inevitável para a China articular de forma clara sua visão sobre o futuro do sistema internacional, sobretudo para os países do Sul Global.
“As quatro iniciativas fazem parte da resposta da China à gravidade da crise da ordem global, que se torna cada vez mais evidente”, explicou.
Segundo o intelectual, elas respondem a perguntas centrais que vêm sendo feitas internacionalmente, como: qual é a posição da China sobre a ordem global, como ela deve ser reformada e como Pequim enxerga o futuro do sistema internacional — questões que estão no cerne da Iniciativa de Governança Global.
O Sul Global como prioridade estratégica
Jacques enfatizou que as quatro iniciativas são direcionadas, acima de tudo, ao Sul Global, região que a China considera parte central de sua identidade desde 1949.
“A China vê a relação com o Sul Global como a relação primária de sua política externa presente e futura”, afirmou.
Para ele, não foi por acaso que a primeira iniciativa lançada, em 2021, foi a de Desenvolvimento Global, que colocou o avanço econômico do Sul Global como o principal desafio do nosso tempo.
“Para a China, o desenvolvimento do Sul Global é o desafio fundamental da nossa época”, disse.
A Iniciativa de Civilização Global, por sua vez, também tem como público prioritário os países em desenvolvimento.
“Seu público principal certamente não é o Ocidente, que raramente usa o termo civilização e foi culpado pelos imensos danos infligidos às civilizações do Sul Global durante a colonização”, declarou.
Segundo Jacques, o florescimento dessas sociedades depende não apenas do desenvolvimento econômico, mas também de uma profunda renovação civilizacional.
A civilização como eixo da diplomacia chinesa
Na parte final de sua intervenção, Jacques ressaltou as raízes chinesas das quatro iniciativas e da política externa do país como um todo. Ele afirmou que, durante a chamada “Era do Ocidente”, as relações internacionais foram dominadas por conceitos, agendas e linguagens ocidentais, algo que mudou com a China a partir de 2012.
“A China emergiu como um Estado-civilização e apenas muito mais tarde como um Estado-nação; sua identidade primária é a de uma civilização”, afirmou.
Essa perspectiva, segundo ele, explica por que a China possui uma compreensão profunda da importância da civilização para o Sul Global, algo ausente na visão ocidental.
“Juntas, as quatro iniciativas sinalizam o que pode ser descrito como o início da sinicização das relações internacionais”, concluiu Martin Jacques.
A análise do intelectual britânico reforça a leitura de que as propostas chinesas não são apenas instrumentos diplomáticos, mas elementos estruturantes de uma nova visão de ordem global, em um momento de transição profunda do sistema internacional.



