Entenda como funciona o modelo econômico da China segundo Ben Norton
Analista explica o “socialismo com características chinesas”, o papel das estatais, a estratégia industrial e o foco atual em reduzir desigualdades
247 – A China “é um país enorme”, com 1,4 bilhão de pessoas, e sua ascensão econômica mudou a correlação de forças no mundo nas últimas décadas. É o que sustenta o analista geopolítico Ben Norton em uma apresentação publicada no YouTube, na qual ele detalha os fundamentos do modelo chinês conhecido como “socialismo com características chinesas” e “economia de mercado socialista”.
No vídeo, Ben Norton afirma que a China é “a maior economia do mundo desde 2016” quando se mede o PIB por paridade de poder de compra, e argumenta que “você simplesmente não consegue entender o mundo em que vivemos hoje sem entender a ascensão da China e como ela mudou tudo”. Ele diz que sua exposição se baseia em “mais de dois anos de pesquisa vivendo na China” para compreender a “forma muito única” do sistema econômico do país.
Da “humilhação” colonial à retomada de peso global
Ao contextualizar o desenvolvimento chinês, Norton recua ao início do século 19 e ao que chama de “século de humilhação”, iniciado com a Primeira Guerra do Ópio em 1839, quando o Império Britânico atacou a China e “parcialmente colonizou partes” do país. Ele afirma que, antes desse período, a China representava “aproximadamente um terço do PIB global”, com base em dados compilados pelo historiador econômico Angus Maddison, e sustenta que o que se vê hoje é uma “retomada” de uma posição histórica perdida com o colonialismo europeu e japonês.
Ele também chama atenção para limites do PIB como métrica — por não refletir desigualdade e “os tipos de produção econômica” —, mas o usa para dimensionar “o tamanho da China e como é monumental a mudança na economia global”.
Pobreza, renda e indicadores sociais como vitrine do resultado
Um dos eixos centrais da apresentação é a ênfase nos resultados sociais. Norton diz que, “de acordo com o Banco Mundial”, três quartos da redução global da pobreza extrema nas últimas quatro décadas e meia ocorreram “por causa da China”, e afirma que o país “eliminou completamente a pobreza extrema”.
Ao discutir linhas de pobreza, ele cita o patamar de US$ 4,20 por dia (ajustado por custo de vida) e declara que, na China, “ninguém” vive abaixo desse nível, enquanto na Índia “quase um quarto da população” estaria nessa faixa e, na Nigéria, “mais de 60%”.
Norton também destaca a evolução da renda mediana: em 1990, diz ele, era “menos de US$ 2 por dia” e hoje está “em torno de US$ 13 por dia”. Na comparação regional, aponta o Vietnã como o único país com trajetória semelhante, mencionando que lá se fala em “economia de mercado de orientação socialista”.
Em indicadores de saúde, ele afirma que a expectativa de vida chinesa “mais do que dobrou desde a revolução de 1949”, saindo de “35 a 40 anos” para “cerca de 78, 79 anos”, e sustenta que hoje está “basicamente no mesmo nível que os EUA”. Segundo ele, durante a pandemia, a expectativa de vida chinesa teria sido maior do que a norte-americana porque “o governo dos EUA teve tão poucas medidas para proteger sua população”. Ele acrescenta que a mortalidade infantil chinesa está “no mesmo nível” de países desenvolvidos e que, em mortalidade materna, China, Cuba e Vietnã estariam entre os “níveis mais baixos” do planeta.
Deng Xiaoping e a ideia de “desenvolver as forças produtivas”
No coração do argumento, Norton contesta a leitura de que Deng Xiaoping teria “abandonado o socialismo e adotado o capitalismo”. Ele diz que há uma visão ocidental que reduz Deng à lógica de “ficar rico”, e menciona uma frase frequentemente atribuída a ele — “ficar rico é glorioso” — como exemplo de distorção do debate.
O ponto de Deng, segundo Norton, era aceitar que o uso de forças de mercado levaria a um desenvolvimento desigual inicial, com algumas regiões prosperando antes, mas com a obrigação de as áreas avançadas ajudarem as “áreas atrasadas”. Ele cita uma formulação atribuída a Deng para sustentar o foco na industrialização: “o desenvolvimento das forças produtivas também é um tipo de revolução, uma muito importante… é a revolução mais fundamental do ponto de vista do desenvolvimento histórico”.
Norton também relata que o Partido Comunista declarou, em 1982, que a China estava na “fase primária do socialismo” e precisava desenvolver as forças produtivas antes de avançar para estágios superiores. Em 1992, diz ele, a liderança seguinte oficializou o conceito de “economia de mercado socialista”.
O que significa “economia de mercado socialista” na prática
Norton resume o conceito com uma premissa: há capitalistas e empresas privadas na China, mas eles não formam uma força política capaz de controlar o Estado como, na visão dele, ocorre nos EUA. Para ilustrar, ele compara com o sistema norte-americano e diz que, nos EUA, “mais de 80%” dos candidatos com mais financiamento vencem eleições para Senado e Câmara, chamando o país de “a melhor ‘democracia’ que o dinheiro pode comprar”.
Ao abordar a política nos EUA, ele menciona Donald Trump — lembrando que Trump é o atual presidente dos Estados Unidos — e afirma que o republicano estaria “convidando todos esses bilionários para sua posse” e fazendo “jantares com eles”.
Na China, diz Norton, o Estado “controla essa classe capitalista e a disciplina”, sobretudo por meio do controle estatal sobre o sistema financeiro, o crédito e a oferta de moeda. Ele afirma que o país tem “controles de capital muito rígidos” e que o acesso de empresas privadas a dinheiro e crédito pode ser condicionado para induzir investimento em setores estratégicos.
“Economia da gaiola e do pássaro” e o papel das estatais
Para explicar o arranjo, Norton destaca o papel de Chen Yun, descrito por ele como “o arquiteto ideológico” das reformas, e apresenta a metáfora da “economia da gaiola e do pássaro”: o “pássaro” seriam as forças de mercado e o capital privado; a “gaiola” seria a economia sob comando do partido e do Estado, que pode “expandir” ou “encolher” conforme as prioridades nacionais — por exemplo, diante de aumento de desigualdade, poluição ou riscos sistêmicos.
A apresentação recorre a dados que Norton atribui ao economista francês Thomas Piketty para sustentar que a ideia de “privatização total” seria falsa. Ele afirma que, em 1978, “100% dos ativos” das empresas eram estatais e que, ao fim dos anos 1980, “cerca de 90%” ainda eram estatais. Depois, descreve um ciclo de privatizações na década de 1990, associado ao lema “segurar os grandes, soltar os pequenos”: setores estratégicos permanecem sob controle estatal, enquanto áreas não estratégicas (hotéis, restaurantes e fábricas de bens de consumo) teriam sido privatizadas, em um contexto de combate a déficits e inflação.
Segundo Norton, o nível de ativos estatais no conjunto da economia teria se estabilizado desde 2006 em torno de “55% do capital total” das empresas, concentrado nos “postos de comando” da economia: finanças, telecomunicações, energia, transporte e segmentos industriais-chave. Ele afirma que os grandes bancos e instituições financeiras são estatais, formando um “monopólio da oferta de moeda e do acesso a empréstimos”, o que dá ao Estado capacidade de orientar investimentos.
Descentralização e “ações douradas” em gigantes privados
Outro ponto enfatizado é a autonomia local. Norton diz que há uma leitura equivocada de que Pequim “controla tudo”, e sustenta que a tomada de decisão econômica é “extremamente descentralizada”, com governos provinciais e municipais detendo grande margem para planejar políticas e empresas locais. Ele afirma que cresceu o peso de estatais regionais e municipais e que “mais de 80%” das empresas chinesas teriam algum nível de participação estatal.
Ao falar das big techs, Norton cita Alibaba e Tencent como exemplo de empresas privadas em que o Estado pode deter uma “golden share” — uma “ação dourada” que daria poder de veto em decisões críticas, para impedir que companhias atuem contra o “interesse nacional” e para limitar o poder de bilionários.
Ele também afirma que a Huawei seria “provavelmente a maior empresa de propriedade dos trabalhadores no mundo”, e diz que cooperativas rurais e de abastecimento teriam sido estimuladas em campanhas recentes de redução da pobreza e revitalização do campo.
Investimento estrangeiro com “transferência de tecnologia por acesso ao mercado”
Norton contesta a ideia de que a China tenha se desenvolvido apenas por “deixar empresas estrangeiras explorarem mão de obra barata”. Ele diz que Pequim teria estabelecido condições: empresas estrangeiras deveriam formar joint ventures com empresas chinesas (com controle majoritário chinês) e aceitar transferência de tecnologia em troca de acesso ao mercado — o que ele chama de “transferência de tecnologia por acesso ao mercado”.
Ele argumenta que isso foi decisivo para “subir na cadeia global de valor” e evitar ficar presa a setores de baixo valor agregado. E sustenta que a dependência de investimento direto estrangeiro diminuiu com o tempo: no “pico”, diz ele, teria chegado a “6% do PIB” e, hoje, seria “ainda menor que 1%”.
Metas por décadas, planos quinquenais e a virada verde
A apresentação descreve metas de industrialização em etapas, associadas a bens de consumo que simbolizam a elevação da capacidade produtiva: nos anos 1970, “uma bicicleta, um relógio e uma máquina de costura” por família; nos anos 1980, “geladeira, máquina de lavar e TV colorida”; nos anos 1990, “ar-condicionado, videocassete e computador”.
No presente, Norton afirma que o foco estratégico está nos “três novos”: veículos elétricos, painéis solares e baterias, vinculados a planos quinquenais e ao que ele chama de “novas forças produtivas de qualidade”. Ele diz que a China estaria construindo “duas vezes mais capacidade eólica e solar do que o resto do mundo combinado” e que a transformação não se explica por “forças de mercado” isoladas, mas por planejamento, crédito estatal e competição doméstica induzida.
Estados Unidos, financeirização e bolhas
Para contrastar modelos, Norton descreve a “desindustrialização” e a “financeirização” dos EUA na era neoliberal. Ele afirma que “21% do PIB” norte-americano viria do setor FIRE (finanças, seguros e imóveis) e que o país teria trocado política industrial por uma lógica de que “não importa se você faz um chip de batata ou um chip de computador”.
Ele também cita a estagnação da remuneração no setor não financeiro desde os anos 1970 e o salto da remuneração no setor financeiro. Em seguida, diz que a economia dos EUA teria se tornado dependente de bolhas — dotcom, habitação e uma “bolha de tudo” — e aponta que o valor de mercado das empresas listadas seria “220% do PIB”.
O caso do setor imobiliário chinês e o slogan “casas são para morar”
Norton defende que a China, por controlar crédito, teria capacidade de “estourar bolhas” de forma deliberada. Ele menciona uma bolha no mercado imobiliário e diz que o governo afirmou: “casas são para morar, não para especular”. Em 2020, segundo ele, a política das “três linhas vermelhas” restringiu crédito a incorporadoras, reduzindo alavancagem e direcionando financiamento para manufatura e tecnologia, em vez de imóveis. A imprensa financeira ocidental, afirma, trataria isso como “crise”, mas ele descreve como “desalavancagem intencional”.
Desigualdade vira prioridade número um
Ao tratar do presente, Norton diz que a China mudou sua “contradição principal” em 2017. Ele reproduz o trecho do comunicado em inglês do 19º Congresso do Partido Comunista: “A contradição principal da sociedade chinesa evoluiu… agora, a contradição principal é entre desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as necessidades cada vez maiores do povo por uma vida melhor… incluindo demandas por equidade e justiça… desenvolvimento urbano e rural equilibrado e distribuição de renda mais equitativa”.
Ele afirma que o objetivo de “prosperidade comum” (common prosperity) é a prioridade “número um” e diz que a desigualdade, medida pelo índice de Gini, teria atingido pico em 2010 e caído desde então.
Trabalho, sindicatos e a disputa com empresas privadas
No tema trabalhista, Norton afirma que trabalhadores têm direito de formar sindicatos, embora não existam “sindicatos independentes” do partido. Ele cita a All-China Federation of Trade Unions como “a maior federação sindical do mundo”, com “mais de 300 milhões” de membros, e diz que empresas com “pelo menos 25 funcionários” são obrigadas a permitir a criação de sindicato interno, com contribuição empresarial equivalente a “2% dos salários” para a entidade.
Ele menciona conflitos com empresas estrangeiras e cita a Walmart como exemplo de resistência à sindicalização. Também aborda o debate sobre a jornada “996” (9h às 21h, seis dias por semana), afirmando que “isso é ilegal” e que o governo teria declarado “muito claramente” que empresas não podem impor tal regime.
Sobre trabalhadores de entrega, Norton diz que o governo tem pressionado plataformas a garantir proteções: pausas obrigatórias, direitos mínimos e salário mínimo para trabalhadores de aplicativos.
Geopolítica, restrições tecnológicas e a nova Guerra Fria
Na reta final, Norton conecta economia e geopolítica. Ele afirma que o objetivo de potências ocidentais teria sido manter a China “presa no fundo da cadeia global de valor” e argumenta que a disputa atual — que ele chama de “nova Guerra Fria” — se relaciona ao fato de a China ter subido para setores de alta tecnologia, incluindo inteligência artificial.
Ele cita declarações e disputas sobre controles de exportação de chips e critica o movimento para barrar plataformas e tecnologias chinesas. Segundo ele, a competição em setores como veículos elétricos e energia renovável expressa um traço do modelo chinês: o Estado investe e cria infraestrutura, mas força “competição feroz” entre empresas, com margens baixas, para acelerar eficiência e escala.
Ao concluir, Norton sustenta que o conflito central é entre “o sistema chinês” e “o sistema capitalista liderado pelos EUA”, que, em sua leitura, dependeria de monopólios para preservar liderança tecnológica. E fecha a apresentação com a tese de que entender o modelo econômico chinês é essencial para compreender a fase atual da política internacional.



