Trump mira a China, mas atira no hemisfério ocidental
Assim como a Europa, a América Latina também deve ser o foco primordial das ações tarifárias e sanções dos EUA
Por Fernando Marcelino (*), para o 247 - Em recente artigo, apontamos que ainda não sabemos se o resultado catastrófico das tarifas de Trump é o prelúdio de catástrofes maiores ou se ensinou o governo dos EUA a se ajustar à nova realidade do poder mundial. Longe de lançar as bases para um segundo século norte-americano, as tarifas de Trump comprometem a credibilidade do poderio econômico, reduzindo ainda mais a centralidade do país e da moeda na economia política global, fortalecendo a promoção da China como alternativa à liderança norte-americana na Ásia Oriental e outras regiões. Trump acelera o colapso econômico pela resistência dos EUA ao crescente poder econômico da Ásia oriental. As tarifas representam uma forma extremada de resistência ao ajuste e acomodação, mas pela forma que vem acontecendo, devem consolidar ainda mais a transmissão do poder hegemônico global para a Ásia oriental. A grande utopia liberal do consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática, uma diversificação entre os modelos socialistas e capitalistas.
Isso não significa que os países do Hemisfério Ocidental, incluindo a Europa e a América Latina, serão beneficiadas pelas políticas encabeçadas pelos EUA de Trump. Quando ele conquistou sua vitória em novembro, recebeu a missão de colocar os Estados Unidos em primeiro lugar. No âmbito da diplomacia e da defesa, isso significa prestar mais atenção à sua própria vizinhança — o Hemisfério Ocidental. Apesar de quase todos estarem olhando o conflito EUA-China como o mais fundamental, existem outros desdobramentos ocorrendo que impactam principalmente na Europa e na América Latina. O Hemisfério Ocidental deve ser o mais afetado pela política dos EUA. Sem conseguir competir efetivamente com a China, os EUA já vêm tentando substituir a manufatura da Europa (destruição do North Stream, guerra na Ucrânia, etc.) e da América Latina (golpes, lawfare, sanções, etc), aumentando seu poder relativo para futuros conflitos com a China. Por isso, não está descartado que o plano de Trump mire a China, mas atire nos países e nas empresas dos países do Hemisfério Ocidental, para que comprem e se desloquem para os EUA, assim como se alinhem aos seus interesses estratégicos. As ações visando o controle da Groelândia e o Canal do Panamá, como grandes centros de comércio ocidental, apontam nesta direção.
Donald Trump está deixando bem claro que a era de décadas de passividade dos EUA no Hemisfério Ocidental chegou ao fim. A repriorização do Hemisfério Ocidental por Trump é impossível de ignorar. Embora tenha descartado rapidamente o interesse dos EUA na Síria pós-guerra civil e prometido mediar uma resolução rápida para a guerra entre Rússia e Ucrânia, Trump deixou claro seu foco em fechar a fronteira EUA-México à entrada ilegal; expressou interesse em reviver as visões americanas tradicionais sobre a necessidade estratégica da Groenlândia e do Canal do Panamá; concentrou-se fortemente nas preocupações de segurança e comércio dos EUA com o México e o Canadá. Além disso, aplicou tarifas para os países da União Europeia (EU) e ensaiam uma cisão histórica com o Reino Unido.
O PIB nominal do Hemisfério Ocidental em 2023 foi superior a US$ 36 trilhões, segundo dados do FMI. Mesmo somando o PIB do Japão, Coreia do Sul, Taiwan e membros da ASEAN ao da China, se chega a US$ 27 trilhões. A média ponderada do PIB per capita do Hemisfério Ocidental, que ultrapassa US$ 70.000, é muito maior que a do Leste Asiático, onde a média ponderada do PIB per capita chega perto da marca de US$ 17.000, mesmo depois de incluir as três economias mais ricas da região. Portanto, na cabeça de Trump, parece que ser grande, rico, fechado e geograficamente isolado no Hemisfério Ocidental pode conferir algumas vantagens geopolíticas decentes.
As tarifas de Trump e a incerteza geral em torno das políticas comerciais dos EUA podem afetar a economia da UE de várias maneiras. No geral, as tarifas impactam significativamente os exportadores europeus. Elas também podem ter impacto nas decisões sobre inflação e taxas de juros nos próximos meses. As políticas da nova administração dos EUA podem resultar em crescimento econômico lento da UE. As previsões atuais indicam um pequeno aumento no crescimento econômico nos próximos dois anos, após um 2023 já estagnado e crescendo apenas moderadamente (0,2%) em 2024. No caso de uma tarifa de 10% imposta e o consequente aperto financeiro, o FMI prevê que o crescimento da UE nos próximos dois anos seria 1% mais lento, em relação à previsão atual.A UE tem exportado consistentemente mais bens para os EUA do que importado. Em 2023, a UE exportou € 502 bilhões em bens para os Estados Unidos e importou € 344 bilhões, gerando um superávit de € 158 bilhões para a UE, segundo dados do Eurostat. Em 2023, os produtos manufaturados mais exportados da UE para os EUA foram máquinas e veículos, com 41%, seguidos por produtos químicos, com 27%, segundo dados do Eurostat. A Alemanha foi de longe o maior exportador para os EUA, seguida de longe pela Itália e Irlanda. Em contraste, a Europa importa muito mais em termos de serviços do que exporta para os EUA, registrando um déficit de € 104 bilhões nesse setor.
As políticas de Trump durante um segundo mandato terão, sem dúvida, consequências graves para a economia europeia que está profundamente integrada nas cadeias de valor globais. BMW, Volkswagen e Porsche dependem dos EUA para uma parcela substancial das vendas. A montadora francesa Renault e Stellantis (que possui a Peugeot e a Fiat) também têm exposição significativa aos EUA e podem ver um crescimento mais lento nas vendas. A Europa é o lar de algumas das marcas de luxo mais prestigiadas do mundo, incluindo LVMH, Hermès e Burberry. Muitas dessas empresas já perderam o mercado russo e obtêm uma parcela significativa da receita dos consumidores americanos. Se as tarifas aumentarem os preços, os clientes dos EUA podem cortar gastos, impactando o crescimento da receita. Empresas como Siemens, Schneider Electric e Airbus podem enfrentar aumento de custos e atrasos em contratos. Com as cadeias de suprimentos já sobrecarregadas por interrupções anteriores, quaisquer novas barreiras comerciais só agravarão os desafios. A UE também exporta quantidades significativas de alimentos e bebidas para os EUA, incluindo vinho francês, queijo italiano e azeite espanhol. Se as tarifas permanecerem em vigor por muito tempo, algumas empresas europeias podem ser forçadas a cortar investimentos, reduzir as contratações ou até demitir funcionários, pressionando os gastos do consumidor.
O desdém do governo Trump pela Europa é profundo e a fratura transatlântica é estrutural. Washington considera a Europa obsoleta, arrogante e parasitária. O que a Europa fez, segundo Trump, foi cometer o pecado capital de não comprar mais produtos americanos. "Eles não levam nossos carros, não levam nossos produtos agrícolas, não levam quase nada – e nós levamos tudo deles", disse ele. Em entrevista à NBC, Trump também disse que "não se importaria nem um pouco" se as montadoras estrangeiras aumentassem os preços por causa de suas tarifas, argumentando que o objetivo é fazer as pessoas comprarem carros fabricados nos Estados Unidos.
Trump também está interessado em controlar a capacidade da economia europeia se desenvolver por meio de substituir a Rússia como provedora de energia. Como escreveu Alonso Romero, a Casa Branca pressiona o Velho Continente a comprar seu gás. Objetivo é mais que comercial: controlar o desenvolvimento europeu, para não competir com o seu. Trump ameaçou vários líderes com tarifas e sanções se eles não comprarem mais gás natural liquefeito dos EUA para substituir qualquer dependência de fontes de energia russas. Isso permitirá que os EUA controlem o desenvolvimento econômico e tecnológico da Europa para que ele não rivalize com o seu. Segundo a Deloitte, 67% das empresas que realocaram suas atividades citaram o alto custo da energia como o principal fator. Se a dependência da Europa dos EUA em questões energéticas se materializar, eles nunca conseguirão desenvolver nenhum setor sem que os EUA permitam. Os EUA não precisam fazer nada mais do que ameaçar aumentar os custos ou cortar o fornecimento. O que obrigaria a Europa a criar políticas que baixassem os salários como forma de “competir” no mundo.
As queixas de Trump contra a Europa não se limitam ao comércio e energia. Ele criticou duramente os países europeus por não cumprirem os compromissos assumidos na cúpula da OTAN em 2014, de aumentar seus gastos com defesa para 2% do PIB. Sete países da UE não atingiram esse limite em 2024, e muitos outros alcançaram a meta apenas graças a um impulso tardio nos gastos, alimentado pelo desejo de evitar a raiva de Trump. Trump também deve tentar bloquear ao máximo as relações entre China e Europa. As maiores importações da Europa da China são equipamentos de telecomunicações, máquinas e aparelhos elétricos e máquinas automáticas de processamento de dados. Suas principais exportações são automóveis e veículos, medicamentos e outras máquinas. Todos esses são setores-chave e, se forem bloqueados ou cortados, prejudicarão profundamente a economia europeia. Assim, os esforços dos EUA para desacelerar o avanço econômico e tecnológico percebido pela China podem, portanto, causar danos colaterais à Europa.
Outra frente é a tentativa de Trump tomar a Groenlândia, um território autônomo do Reino da Dinamarca. “Precisamos da Groenlândia para a segurança internacional. Precisamos dela. Temos que tê-la”, disse Trump em entrevista. Ele deu a entender que poderia usar força militar para tomar a Groenlândia. "Vamos conquistar a Groenlândia. Sim, 100%. Há uma boa possibilidade de que isso possa ser feito sem força militar", acrescentando, no entanto, que "não retiro nada da mesa". A obsessão de Trump com a ilha estratégica e rica em minerais se intensificou nas últimas semanas. Ele fez da questão uma prioridade máxima de segurança nacional e disse que "precisamos" do território para garantir a posição dos EUA no Ártico.
Quando Trump fala em adquirir a Groenlândia, renomear o Golfo do México como "Golfo da América" e assumir o controle do Canal do Panamá, ele fala diretamente de uma preocupação com a segurança hemisférica. Trump considera a segurança operacional de rotas de navegação e passagens marítimas essenciais — a Passagem Noroeste, o Canal do Panamá e, mais ao sul, a Passagem de Drake. A sustentação do poder atual e futuro dos EUA, portanto, depende da manutenção do domínio energético, do controle de rotas comerciais estratégicas e da manutenção de uma defesa do Hemisfério Ocidental. O que a oferta de "compra" da Groenlândia revela é fundamentalmente o medo de que os EUA não consigam conter a China e seus planos de aumentar seu domínio no Leste Asiático (incluindo Taiwan) e além. Se isso acontecer, os EUA não devem depender de aliados menores e mais fracos, como Dinamarca e Canadá (e outros, como o Panamá), para defender os interesses dos EUA.
Com o tempo, poderemos ver o fim da globalização como a conhecemos e o surgimento de dois ou três blocos comerciais ao redor do mundo, isolados uns dos outros por tarifas altas, tensões geopolíticas e diferentes sistemas e filosofias políticas. Porém, até agora, líderes europeus não perceberam que estão em apuros, muito menos tem respostas, planos de contingência e medidas para defender os interesses dos países.
Assim como a Europa, a América Latina também deve ser o foco primordial das ações tarifárias e sanções dos EUA, que visam apertar o cerco geopolítico ao seu “quintal”, como disse seu Secretário de Defesa. É o que debatemos no próximo artigo.
(*) Fernando Marcelino é analista internacional especializado em China, autor de diversos livros como “A Revolução das Cidades Inteligentes na China” (Appris, 2024), “Reflexões sobre o Socialismo Chinês” (Kotter, 2025) e “Deng Xiaoping: as ideias que transformaram a China na superpotência do século XXI” (Kotter, 2025, no prelo).
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