Investigação da Reuters aponta fracasso total da chacina no Rio de Janeiro
Reportagem mostra que ação contra o Comando Vermelho terminou em massacre, não atingiu liderança criminosa e deixou ao menos 121 mortos
247 – Uma investigação detalhada da agência Reuters revela que a operação policial mais letal da história do Brasil, realizada em outubro de 2025 nos complexos de favelas da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, esteve longe de representar o “sucesso” anunciado pelas autoridades.
A ação, que deixou ao menos 121 mortos, incluindo quatro policiais — um quinto morreu semanas depois em decorrência dos ferimentos — foi marcada por vazamentos de informação, falhas de planejamento, emboscadas e uma escalada de violência que culminou em cenas descritas por moradores como um verdadeiro massacre.
A reportagem da Reuters, publicada neste sábado, analisou depoimentos de oito oficiais de alta patente, entrevistas com testemunhas, relatórios policiais e imagens de drones e vídeos. O material aponta que a liderança do Comando Vermelho, alvo central da operação, saiu ilesa, enquanto comunidades inteiras foram submetidas a 17 horas ininterruptas de confronto armado.
Vazamentos e perda do elemento surpresa
A operação começou pouco depois da meia-noite de 28 de outubro, quando policiais se depararam com cerca de 20 homens armados em motocicletas deixando o Complexo do Alemão. Segundo um relatório policial visto pela Reuters, dois deles, feridos durante um tiroteio, afirmaram que o grupo fugia porque havia informações vazadas de que a polícia se aproximava da cúpula do Comando Vermelho.
Horas depois, fogos de artifício — tradicional sinal de alerta nas favelas — ecoaram sobre o Alemão e a Penha. “Sua adrenalina vai lá em cima”, relatou o jornalista local Wazen Ferreira, que se escondeu em um bar com outros moradores. “A boca seca, e tudo o que você sente é sede.”
De acordo com Andre Luiz de Souza Neves, um dos diretores da polícia responsáveis pelo planejamento da ação, o mau tempo havia levado ao adiamento sucessivo da operação, permitindo que rumores circulassem. Embora não tenham sido oficialmente identificados vazamentos, o próprio comando reconheceu que a mobilização de um contingente excepcional pode ter alertado os criminosos. “Não chegamos com o elemento surpresa”, afirmou Fabricio Oliveira Pereira, chefe da unidade especial da Polícia Civil, em depoimento.
Emboscada e mortes de policiais
Mesmo com indícios de que os criminosos estavam preparados, a polícia avançou para cumprir mandados na casa do chefe do tráfico Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca. A equipe nunca chegou ao local. Antes das 9h da manhã, policiais foram alvejados de posições elevadas.
O policial Bernardo Leal Annes Dias, de 45 anos, foi atingido na perna, que precisou ser amputada posteriormente. O detetive Marcus Vinicius Cardoso de Carvalho, de 51 anos, morreu com um tiro no peito. Ficou claro que os agentes haviam caído em uma emboscada.
Entre os enviados como reforço estava Rodrigo Velloso Cabral, de 34 anos, com apenas dois meses de corporação. Imagens de drone mostram colegas avançando por uma trilha conhecida por atividade criminosa. Cabral foi morto com um tiro na cabeça. Nenhum dos agentes usava capacete.
Operação sai do controle
A ação envolveu a Polícia Civil e a Polícia Militar, incluindo o BOPE, unidade de elite conhecida por sua alta letalidade. Segundo o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor dos Santos, o plano previa até 2.500 policiais, buscando uma vantagem numérica de cinco para um. No entanto, relatórios entregues ao Ministério Público indicam que cerca de 1.100 agentes entraram efetivamente no Complexo da Penha naquela manhã.
Com as primeiras baixas, o BOPE abandonou posições estratégicas para realizar uma missão de resgate. “A missão virou uma luta pela vida”, relatou aos promotores o capitão Jansen Ferret, após mais policiais serem mortos e feridos.
Ao longo da tarde, o confronto se intensificou. Escolas foram fechadas, ônibus incendiados e vias bloqueadas em diferentes pontos da cidade. O número de mortos continuou a subir, superando o recorde anterior da chacina do Jacarezinho, em 2021.
Falhas, câmeras sem bateria e medo entre agentes
Apesar de decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2022, que obriga o uso de câmeras corporais em operações em favelas, o BOPE não levou baterias extras. O comandante Marcelo Corbage admitiu que a unidade não esperava que a ação durasse mais de seis horas.
Segundo Neves, um dos diretores da operação, o medo tomou conta dos agentes. “Não vamos sair daqui vivos”, teria dito um policial após o fim da incursão. A cada hora, novas informações sobre colegas baleados ampliavam a sensação de angústia.
Corpos removidos e investigação comprometida
À noite, viaturas do BOPE recolheram dezenas de corpos antes da perícia. Vídeos mostram ao menos cinco carros funerários chegando ao Instituto Médico-Legal após as 22h30. Para o perito Cassio Thyone, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a remoção dos corpos violou a legislação e comprometeu investigações independentes.
Moradores relataram cenas de horror. Grupos da comunidade encontraram corpos mutilados, alguns decapitados. Sem resposta oficial, residentes passaram a transportar cadáveres em caminhonetes até a praça central da Penha para identificação.
Dor e luto nas comunidades
Entre as vítimas estava Wellington Brito, de 20 anos. Sua mãe, Taua Brito, contou à Reuters que trocou mensagens com o filho enquanto ele fugia. “Eu só quero que isso acabe”, escreveu ele pouco antes de morrer. Taua encontrou o corpo do filho sob um lençol manchado de sangue, entre dezenas de outros.
Autoridades estaduais negam que tenha havido massacre. “Não houve massacre”, afirmou Victor dos Santos à Reuters, alegando que os mortos confrontaram a polícia. Especialistas, porém, veem um padrão recorrente. “Há uma lógica de vingança, em que policiais aplicam sua própria noção de justiça”, analisou Adilson Paes de Souza, pesquisador da letalidade policial.
Dois meses após a operação, barricadas e postos de controle do Comando Vermelho ainda estavam ativos. Para moradores e lideranças locais, a maior operação policial da história do país não enfraqueceu o crime organizado — apenas aprofundou o trauma, o luto e a desconfiança em relação às políticas de segurança pública.



