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A verdade em marcha: entenda, em detalhes, como e por que Alysson Mascaro foi perseguido por uma mentira fabricada

Professor da USP foi alvo dos aparelhos ideológicos que ele sempre denunciou a partir de denúncias forjadas de fundo moral

Crítica do cancelamento, de Alysson Mascaro (Foto: Brasil 247 / Contracorrente)

247 – A expressão “a verdade está em marcha e nada a deterá”, do escritor francês Émile Zola, sintetiza uma posição histórica e ética segundo a qual a verdade não é neutra, não se limita a equilibrar versões e não se submete ao poder constituído. A verdade avança quando confronta estruturas que dependem da mentira para se manter. 

É a partir dessa chave que se compreende a perseguição ao professor Alysson Mascaro: não como um episódio administrativo isolado da Universidade de São Paulo, mas como uma operação típica de lawfare e silenciamento ideológico, na qual acusações morais fabricadas pelo site estadunidense The Intercept cumprem a função de interditar uma crítica estrutural ao capitalismo.

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Zola, Dreyfus e a verdade que enfrenta o Estado

O Caso Dreyfus permanece como um dos exemplos mais claros do funcionamento do arbítrio moderno. Alfred Dreyfus, capitão judeu do Exército francês, foi condenado injustamente por traição a partir de provas forjadas, num contexto em que Estado, Forças Armadas, Judiciário e preconceitos estruturais atuaram de forma coordenada para preservar interesses corporativos. Émile Zola surge nesse cenário não apenas como romancista consagrado, mas como intelectual público que compreendia a escrita como instrumento de intervenção social.

Ao publicar o artigo “J’accuse…!” no jornal L’Aurore, dirigido por Georges Clemenceau, em 13 de janeiro de 1898, Zola rompeu deliberadamente com qualquer pretensão de neutralidade. O texto, apresentado como carta aberta ao presidente da República, nomeou autoridades, descreveu mecanismos de fraude institucional e acusou diretamente o Estado de condenar um inocente para proteger a si mesmo.

É nesse contexto que se afirma a ideia da “verdade em marcha”. Zola foi condenado por difamação e forçado ao exílio, mas sua intervenção abriu fissuras irreversíveis no sistema de mentiras que sustentava a condenação de Dreyfus.

Por que o “J’accuse…!” se tornou um marco do jornalismo

O “J’accuse…!” redefiniu de forma duradoura o papel da imprensa. Pela primeira vez, o jornalismo se afirmou como instrumento direto de denúncia do Estado, acusando nominalmente autoridades militares e judiciais de fabricar provas e ocultar documentos. A assinatura de Zola não foi um detalhe formal, mas um compromisso público com a verdade, que vinculava reputação, responsabilidade autoral e risco pessoal à denúncia.

O texto combinou rigor factual com força narrativa, demonstrando que o jornalismo pode ser preciso sem ser frio e engajado sem abandonar os fatos. Ao recusar a falsa equivalência entre verdade e mentira, estabeleceu um princípio central do jornalismo crítico: diante de uma injustiça comprovada, a neutralidade não é virtude, mas cumplicidade.

Por que a imprensa passou a mentir na modernidade

Com o avanço do capitalismo e da integração entre mídia, finanças e poder político, a mentira jornalística deixou de ser exceção para se tornar mecanismo estrutural. Em muitos países, a grande imprensa deixou de atuar como contrapoder e passou a funcionar como fração orgânica das elites econômicas, financeiras e geopolíticas. Inserida nessas estruturas, ela não pode dizer a verdade integral sem colocar em risco o sistema que a sustenta.

A mentira contemporânea raramente é grosseira ou explícita. Ela opera por meio da seleção de fatos, da ocultação de contextos decisivos, da amplificação de versões convenientes e do silenciamento de vozes dissidentes. A falsa neutralidade transforma-se em técnica sofisticada de dominação, criando equivalências artificiais entre agressor e vítima e despolitizando conflitos reais, como perseguições judiciais seletivas e processos de lawfare.

A dependência econômica da publicidade corporativa, do sistema financeiro, de fontes oficiais e de plataformas controladas por big techs cria linhas invisíveis de censura editorial. O resultado não é o silêncio absoluto, mas o deslocamento do sentido. A imprensa passa a produzir consenso, não verdade, criminalizando a dissidência e rotulando críticas estruturais como “radicais” ou “desinformação”. Assim, rompe-se o pacto ético original do jornalismo, ligado à fiscalização do poder e à defesa dos injustiçados, e a verdade volta a ser tratada como ameaça.

A imprensa como aparelho ideológico de Estado

Na teoria do intelectual francês Louis Althusser, um dos grandes inspiradores do pensamento de Alysson Mascaro, a dominação moderna não se sustenta apenas pela coerção direta dos aparelhos repressivos, como polícia, Exército e tribunais, mas pela ação cotidiana dos aparelhos ideológicos de Estado, entre eles a imprensa. Sua função central não é informar de forma neutra, mas reproduzir as condições sociais que garantem a continuidade da ordem vigente.

Nesse quadro, a mentira jornalística não é falha moral individual, mas efeito estrutural. A ideologia funciona tornando certas ideias naturais, evidentes e incontestáveis. Quando a imprensa naturaliza desigualdades, trata interesses do mercado como interesses universais ou apresenta decisões políticas como fatalidades técnicas, ela organiza o sentido da realidade sem precisar negar os fatos.

A falsa neutralidade é a forma ideológica mais eficiente, justamente porque oculta seu caráter ideológico. Sempre que uma verdade ameaça expor a violência estrutural do Estado ou a lógica de classe do capitalismo, ela deixa de ser tolerável. Nesse momento, a imprensa silencia seus alvos.

Família, Pasolini e a ruptura do senso comum

A família ocupa posição central entre os aparelhos ideológicos, pois antecede a escola e o trabalho, naturaliza hierarquias e transmite valores de classe, gênero, sexualidade e propriedade. Apresentada como espaço privado e afetivo, ela funciona como fábrica primária de subjetividades ajustadas à ordem social.

Em Teorema, de Pier Paolo Pasolini, essa engrenagem é deliberadamente desmontada. Uma família burguesa aparentemente estável entra em colapso após a visita de um estranho que estabelece relações íntimas com todos os seus membros. O visitante não ensina nem moraliza; ele desorganiza. A sexualidade aparece como instrumento de ruptura ideológica, desmontando a gramática simbólica que sustenta a família burguesa.

O colapso do pai, que abandona a fábrica, renuncia à propriedade e termina nu no deserto, simboliza a falência da autoridade quando o aparelho ideológico deixa de funcionar. Pasolini foi perseguido porque atacou simultaneamente a família burguesa, a moral sexual normativa, a hipocrisia da classe média, a Igreja institucional e o capitalismo de consumo. Censura, processos, demonização e, por fim, seu assassinato se inserem na lógica de um sistema que reage quando sua base simbólica é exposta.

Universidade, direito e reprodução da dominação

As universidades, especialmente as faculdades de direito, ocupam lugar central na reprodução da dominação burguesa. Elas não apenas transmitem conhecimento técnico, mas formam elites dirigentes e naturalizam o capitalismo como horizonte incontornável. O direito é estratégico porque traduz relações de força em normas abstratas, convertendo interesses de classe em legalidade e violência estrutural em procedimento legítimo.

As faculdades de direito formam sujeitos que confundem legalidade com justiça, tratam a propriedade privada como direito natural e veem o Estado como árbitro neutro. O mito da neutralidade jurídica encobre o fato de que a lei protege a propriedade antes da vida e transforma desigualdade material em igualdade formal. O jurista, formado nesse ambiente, torna-se operador inconsciente da dominação, aplicando normas e legitimando a coerção estatal sob a aparência de cumprimento da lei.

A universidade tolera críticas desde que não questionem sua própria função ideológica. O marxismo abstrato e ritualizado é aceitável; a crítica que desmistifica a instituição como parte do problema não é. Quando a universidade se reconhece no espelho da crítica, ela reage.

O falso progressismo e a moralização da política

A substituição da política pela moral é uma das marcas centrais do capitalismo contemporâneo. O chamado falso progressismo, marcado pelo identitarismo, abandona a crítica às estruturas de classe e concentra-se em linguagem, identidades e condutas individuais. O conflito deixa de ser sistêmico e passa a ser moral.

Esse deslocamento é funcional ao sistema. O moralismo individualiza problemas estruturais, substitui análise por julgamento e produz culpa em vez de consciência. O capitalismo incorpora identidades sem tocar em salários, precarização ou concentração de riqueza. A política se converte em gestão de sensibilidades, enquanto o poder econômico sai do centro da crítica.

Essa falsa radicalidade, baseada em cancelamentos e vigilância moral, fragmenta os dominados, enfraquece a solidariedade e impede a organização coletiva. Universidades, mídia corporativa, ONGs e fundações promovem esse progressismo seguro, que reorganiza o vocabulário da dominação sem ameaçar suas bases materiais.

ONGs, cancelamento e controle ideológico

O investimento do grande capital em ONGs e veículos de comunicação associados a elas não é filantropia, mas sim parte da estratégia de dominação. A repressão direta é cara e instável; o consenso moralizado é mais eficiente. Essas organizações funcionam como aparelhos ideológicos terceirizados, com aparência de independência, linguagem humanitária e ausência de controle democrático.

O financiamento condiciona pautas e limites. Causas que não questionam propriedade privada, financeirização ou luta de classes são incentivadas; críticas estruturais são desestimuladas. O cancelamento torna-se tecnologia de poder, destruindo reputações sem debate, isolando críticos perigosos e produzindo autocensura difusa. A política se transforma em tribunal moral permanente, enquanto bancos, monopólios e desigualdades seguem intactos.

Moralismo progressista e fortalecimento da extrema-direita

Ao reduzir a política à guerra cultural, o progressismo moralista produz ressentimento social. Para amplas maiorias precarizadas, ele aparece como elitismo cultural e desprezo material. A extrema-direita ocupa esse vazio, oferecendo pertencimento, linguagem simples e falsa rebeldia contra “as elites culturais”.

Forma-se uma polarização barulhenta que substitui o conflito de classe por choques simbólicos. A extrema-direita provoca, o moralismo reage, a mídia amplifica, e o capital observa intacto. Ambos operam dentro de um campo permitido que não toca as estruturas reais de poder. O verdadeiro antagonismo permanece fora de cena.

Alysson Mascaro e a reação do sistema

É nesse quadro que se insere o afastamento e a expulsão de Alysson Mascaro da Universidade de São Paulo, após denúncias morais anônimas, que foram fabricadas e amplificadas pelo The Intercept, um veículo de comunicação estadunidense que se apresenta ao público brasileiro como progressista. A questão central não é o mérito jurídico-administrativo das acusações, mas a função política que essa operação cumpre.

Sistemas de dominação não reagem a ideias inofensivas. O marxismo é tolerado enquanto permanece hermético, acadêmico e restrito a nichos. Mascaro ultrapassou esse limite ao se tornar intelectual público de amplo alcance, divulgador acessível do marxismo, crítico do Estado, do direito, da universidade e do capitalismo como estrutura.

A crítica se torna intolerável quando forma sujeitos, quando circula para além dos muros acadêmicos e passa a produzir consciência. Nesses momentos, o ataque não é político, mas moral. A acusação individual substitui o debate estrutural, despolitiza a discussão e elimina a ideia sem precisar refutá-la.

A universidade de elite tolera o marxismo decorativo, mas não tolera ser desmascarada como aparelho ideológico. E não se trata apenas de Mascaro. O gesto da demissão sem provas cumpre função pedagógica: intimida outros intelectuais, produz autocensura e delimita o campo do aceitável. A mensagem é clara e conhecida: critique costumes, linguagem e indivíduos, mas jamais critique o sistema de forma acessível e popular.

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