Especialistas criticam "disputa política" em torno do PL Antifacção
Relator, Guilherme Derrite transformou projeto do governo em "um monstrengo"
247 - A aprovação do chamado PL Antifacção pela Câmara dos Deputados transformou-se em um ato de enfrentamento político, eclipsando discussões estruturais sobre segurança pública e sistema prisional. O texto, votado na noite de terça-feira (18) em Brasília, mobilizou oposição e base governista em torno de um embate mais partidário do que técnico, apontam especialistas.
Especialistas em direito criminal ouvidos pela Folha de S. Paulo sustentam que o projeto — relatado por Guilherme Derrite (PP-SP) — avançou sem o aprofundamento necessário para lidar com o crime organizado e os desafios do sistema penitenciário brasileiro.
Gustavo Scandelari, coordenador do Núcleo Criminal da Dotti Advogados, avalia que as divergências entre a proposta original enviada pelo governo e as alterações feitas pelo relator foram guiadas mais por disputas políticas do que por fundamentos jurídicos. "A rigor, entre as divergências existentes no projeto original do governo e depois nas várias alterações sugeridas pelo relator Derrite e que foram aprovadas, não parece haver muita tecnicidade, não parece haver muita preocupação com questões constitucionais, com questões de garantias dos investigados de direitos humanos. Parece haver, na verdade, mais uma disputa política pela responsabilidade da aprovação desse projeto quando for aprovado".
Para Scandelari, o debate público também careceu de profundidade: "os debates não têm sido profundos, não têm sido técnicos em relação à solução do problema. Não tem havido uma preocupação genuína por parte dos representantes eleitos brasileiros em relação à solução do problema nestes pontos que têm sido levantados por eles e seus representantes na imprensa, como, por exemplo, a crise de segurança pública e a grande dificuldade que existe em nosso sistema de execução penal em relação à ressocialização, em relação ao controle de líderes de facções dentro do sistema prisional brasileiro".
Renato Vieira, ex-presidente do IBCCrim e doutor em direitos processuais penais pela USP, reforça que o teor das versões divulgadas por Derrite demonstra a condução política do processo legislativo. Segundo ele, o projeto enviado pelo governo — ainda que sujeito a críticas — apresentava propostas relevantes, como a figura do infiltrado colaborador. "Aí veio essa tendência irresponsável de primeiro apropriar-se do discurso antiterrorista e depois questionar a atribuição da Polícia Federal e colocar dentro do projeto uma ação civil de perdimento de bens. Então, o que o secretário licenciado fez foi emascular um projeto do governo criando um monstrengo. É isso que a gente está vivendo agora".
Outro ponto de preocupação é destacado por Rodrigo Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele alerta que o substitutivo apresentado por Derrite pode gerar efeito inverso ao pretendido: "o texto consagra um modelo de hiperendurecimento penal que ignora evidências, desorganiza o ordenamento jurídico e aprofunda a crise do sistema prisional, justamente o ambiente hoje mais controlado pelas facções. Ao eliminar a diferenciação entre lideranças e base, inviabilizar a progressão de regime como mecanismo de reinserção gradual e manter um sistema de confisco ineficaz, o substitutivo tende a fortalecer, e não enfraquecer, o crime organizado".
Apesar das críticas, Scandelari reconhece três pontos positivos no texto apresentado por Derrite: a atualização de leis penais específicas, a separação entre fundos estaduais de segurança e o fundo da Polícia Federal e a criação de uma legislação própria para organizações criminosas ultraviolentas. "Essa inovação parece louvável na medida em que significa uma maior organização do sistema legislativo. Nesse ponto me parece que ninguém discorda, de que é necessária uma inovação profunda, uma alteração relevante no quadro legislativo brasileiro para combater o crime organizado", opinou.
Os especialistas também antecipam que trechos do PL enfrentarão questionamentos no Senado, especialmente por possíveis inconstitucionalidades ou por repetirem dispositivos já existentes. Vieira cita dois exemplos críticos: "a suspensão do auxílio-reclusão para os parentes é um ponto de inconstitucionalidade, assim como o monitoramento de conversas de presos provisórios com familiares e pessoas do âmbito externo".
A análise jurídica indica que, diante de um tema tão complexo, o Congresso ainda terá um longo caminho até encontrar soluções que conciliem eficácia no combate ao crime organizado e respeito às garantias constitucionais.



