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Marcelo Moraes Caetano

Psicanalista, doutor em Letras, professor adjunto na UERJ. Autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior

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"Inteligência artificial" e ódio digital bolsolavista

Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro (Foto: Alan Santos/PR)
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Nos últimos dias, o Presidente Lula tem falado frequentemente sobre algo que deveria parecer banal de tão óbvio: a importância do ser humano e o quanto a chamada “Inteligência artificial” nunca será capaz de supostamente nos superar. O que ocorre é que uma das estratégias nefastas da guerra do ódio que tomou conta do Brasil desde pelo menos o golpe de 2016 (com acirramentos gravíssimos durante os quatro anos do desgoverno de Bolsonaro) é justamente empurrar toda e qualquer humanidade para debaixo do tapete das “novas tecnologias da informação”, das quais as redes sociais são expoentes importantíssimos. Haja vista as milícias digitais e a propagação em escala industrial de fake News e, mais recentemente, de redes de ataques às escolas e de chacinas promovidas pela extrema direita.

O gabinete do ódio, recentemente abortado por seu principal mentor, Carlos Bolsonaro, foi o braço mais forte da guerrilha baseada no mundo virtual, que Olavo de Carvalho adaptou para as terras brasileiras a partir de suas leituras e interpretações integralistas e neonazistas.

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O ódio histórico das elites brasileiras por todas as classes sociais que não detenham poder simbólico e/ou político ficou muito mais evidente com a ascensão – e queda cada vez mais evidente – do bolsolavismo. O Brasil foi construído historicamente com base em grandes proprietários rurais, num tipo de modo de produção que mescla o capitalismo (com a alta burguesia detentora do poder político-econômico) e o feudalismo (que se apresenta nas terras brasileiras desde o regime das capitanias hereditárias, em 1530, dando início à colonização propriamente dita do Brasil).  É importante salientar que o conceito de “propriedade privada” em O capital, de Marx, deve ser compreendido, primeiramente, como a apropriação que certas classes sociais (as burguesias, sobretudo a alta burguesia, e proprietários de latifúndios, no caso do Brasil) detêm sobre outras classes sociais (partes da burguesia, sobretudo a baixa burguesia, e o proletariado).

As relações de trabalho, assim, se circunscrevem tão só aos modelos capitalistas – industrial, financeiro, rentista etc. –, em que as classes dominantes-hegemônicas dispõem não só da “propriedade privada” da mão de obra e dos meios de produção das classes dominadas-periféricas na infraestrutura, como dispõem também de poder político-econômico na superestrutura, criando uma casta quase impenetrável. 

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A doutrina que o finado Olavo tentou implementar à moda brasileira reedita esse modo de relação de dominação entre as classes com seu viés de idealização. O apelo ao abstrato em detrimento do concreto é marca intrínseca ao bolsolavismo. Essa abstração, inerente ao bolsolavismo, encontra expressão muito fértil nos meios virtuais, onde as milícias digitais deitam e rolam. No livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo de Carvalho (Rio de Janeiro: Record: 2013), o capítulo Do mito à ideologia mostra essa deturpação hipnótica, fetiche com a abstração da “espiritualidade”, que Olavo tentava impor ao modus operandi do bolsonarismo, fundindo-se no bolsolavismo:

“A falta de santos, de místicos e de filósofos num país de dimensões continentais e quinhentos anos de existência já basta para fazer dele uma anomalia espiritual assustadora, provavelmente sem similar na história universal.

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“Porém, mais anormal ainda é que ninguém se preocupe com isso, que todos creiam dever constituir primeiro a sociedade ideal, com 200 milhões de cidadãos satisfeitos e rechonchudos, para depois, só depois, tratar de adquirir alguma consistência no plano do espírito. Esta pretensão insensata é talvez a maior manifestação de desprezo coletivo à “única coisa necessária” que já se observou na espécie humana.

“Não há, no repertório das possibilidades históricas conhecidas, exemplo de sociedade que lograsse encher todos os estômagos para só depois alimentar os corações e cérebros. Os povos mais primitivos, as comunidades mais rudimentares já mostravam saber que algum tipo de conhecimento metafísico precedia, no tempo e na ordem hierárquica dos fatores, a organização material da sociedade — pois a sociedade é feita por homens, e a organização da alma humana precede a possibilidade mesma da ação racional na sociedade.

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“A expressão “mito fundador” anda hoje nas bocas dos nossos acadêmicos, mas é evidente que eles não têm a menor ideia do que seja isso. Imaginam que se trate de uma enorme ilusão coletiva inventada por espertalhões da classe dominante para colocar os homens a seu serviço — uma imensa cenoura de burro a orientar o trajeto da carroça histórica. Santo Deus! Acham que mito fundador é ideologia.” (CARVALHO, op.cit., pp. 390-391)

Como todos sabem, as falácias em Olavo de Carvalho não deixam de refulgir em uma única linha que seja. Destaco de cara o trecho: “Os povos mais primitivos, as comunidades mais rudimentares já mostravam saber que algum tipo de conhecimento metafísico precedia, no tempo e na ordem hierárquica dos fatores, a organização material da sociedade” (sublinhei). Justamente o fato de que se busca um “conhecimento metafísico” que deva preceder, “na ordem hierárquica”, “a organização material da sociedade” é atributo dos POVOS MAIS PRIMITIVOS e das COMUNIDADES MAIS RUDIMENTARES.  O que o tipo de conservadorismo olavista busca CONSERVAR é isso mesmo: um modo de vida PRIMITIVO, RUDIMENTAR. É a essas sociedades que eles buscam que retornemos. Tantas vezes ficou claro que o desejo bolsolavista de raiz é retornar à Idade Média, ao feudalismo, à Terra plana, ao teocentrismo, ao geocentrismo...

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No caso olavista, trata-se, portanto, de uma doutrina que remonta a uma idealização abstrata de Platão, que, segundo essa forma de conceber o mundo bolsolavista, deve ser considerada superior à realidade empírica, material, histórica e política que Aristóteles, o principal de discípulo de Platão, descreveu minuciosamente, discordando de seu Mestre. 

Essa idealização fetichista bolsolavista encontra terreno fecundo na realidade virtual que a chamada inteligência artificial ocasiona. 

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Outro fragmento do livro de Olavo, da seção intitulada “Gayzismo”, também o comprova: 

“Tudo isso é bastante evidente, e o deputado Clodovil Hernandes é a prova de que não é preciso ser heterossexual para admiti-lo. Se a afirmação do óbvio está em vias de se tornar crime, é porque o ódio do movimento gay não se volta contra injustiças e perseguições reais (infinitamente menores, em todo caso, do que aquelas sofridas pelos cristãos e judeus), mas contra a razão, a lógica, o bom senso e a civilização. Culturalmente, a ideologia gay nasce de correntes de pensamento que professam destruir a “tirania do logos” e instaurar, em lugar da ordem racional, a pura vontade de poder de um ativismo prepotente e chantagista.” (CARVALHO, 2013, op.cit, pp.488-489)

A respeito desse fragmento, cumpre evidenciar que o conceito de “lugar de fala” foi fortemente abalado com a constatação dos fatos disseminados pelo bolsolavismo. Uma das estratégias da extrema-direita brasileira atual é justamente selecionar algumas pessoas que pertencem à classe oprimida, mas que se expressam como opressoras da sua própria classe. É o microfascismo ou fascismo introjetado, de que nos falam Deleuze e Guattari. 

Esse tipo de uso do oprimido que se torna imediatamente opressor, que pode ser considerado infame, constitui parte fundamental da estratégia bolsolavista. Observe-se que Olavo de Carvalho cita como argumento de autoridade CONTRA a homossexualidade exatamente um homossexual: Clodovil Hernandes, que era hostil à causa LGBT+. Casos de negros racistas, mulheres misóginas, gays homofóbicos etc. são REGRAS ABSOLUTAS no bolsolavismo, o que, reitero, nos faz questionar a ideia de “lugar de fala” quando confrontada com a ideia, muito mais vívida, de “microfascismo”. 

Ainda sobre esse trecho, o que Olavo chama de “ordem racional” nada mais é do que o ódio que o bolsolavismo possui em relação ao fato incontestável de que o ser humano NÃO É um ser exclusivamente racional, como o seria à moda de Descartes ou de Kant. Muito menos somos seres exclusivamente biológicos, como se fosse isso o que Darwin pretendesse. Somos seres de CULTURA, e exatamente essa circunstância responde muito satisfatoriamente, para início de conversa, à pergunta antropológica por essência: o que nos torna humanos?

O bolsolavismo destila ÓDIO em relação à CULTURA (POPULAR) precisamente por causa do poder imensurável que essa nossa característica (a cultura, material e empírica) impõe sobre esse “Logos” e essa “ordem racional” que os delirantes da extrema-direita abraçam de modo (quase paradoxalmente) IRRACIONAL. Eles são APAIXONADOS pela racionalidade... com todos os absurdos esquizofrênicos que esse sintagma pode comportar.

Fato curioso, nesse metaverso bolsolavista, é que esse fetiche pela tecnologia intrínseco à doença mental que se tentava disseminar com a leitura de Olavo de Carvalho acaba de fato remetendo o ser humano de volta à caverna de Platão. Ocorre que o próprio Platão acusou a caverna como sendo um lugar de ilusões proporcionadas pelo fascínio diante das distorções que o fogo (similar às mídias da tecnologia contemporânea) gera. Ou seja, o fascínio desmesurado pela “Inteligência” artificial e as mídias digitais tecnológicas, dentro da própria teoria de Platão, que Olavo tanto abraça (mesmo que de modo inconsciente), é devidamente ACUSADO como causador de um tipo de ser humano ENTORPECIDO e HIPNOTIZADO pelas distorções alheias ou meramente tangenciais à REALIDADE CONCRETA.

Um dos mais recentes braços desse fascínio doentio, acusado pelo próprio Platão, ressalto, são os ataques às escolas, que não seriam possíveis se não houvesse a mediação da “Inteligência” artificial e do mundo virtual. 

Para se entender o bolsonarismo, qualquer que venha a ser o nome que esse movimento de extrema-direita à brasileira venha a ter no futuro com a retirada de cena de Bolsonaro, precisa continuar COMPREENDENDO o que Olavo de Carvalho pretendia realizar.

Isso porque Olavo fala de forma muito explícita e sem o menor pudor sobre todos os matizes do que viria a ser o bolsonarismo, e do que este espectro cognitivo-social ainda representa. A mentalidade olavista não é suficiente para entendermos o que ocorreu com as massas brasileiras nos últimos anos. Mas é completamente necessário entendê-lo, pela revelação explícita do que se pretendia alcançar e do que e de quem se pretendia EXTERMINAR para alcançar os fins a que se propunha. 

A ligação entre o bolsolavismo e as milícias digitais é intrínseca. O fascínio pela “Inteligência” artificial é arma poderosa para se criarem massas de manobra e peões do xadrez bolsonarista, que saíram em campo para acampar em portas de quartéis durante meses, para invadir as sedes dos 3 Poderes, para promover chacinas com armas de fogo. São pessoas que vivem numa realidade literalmente virtual, num “Brasil paralelo” inventado e distorcido como a “realidade” vista dentro da caverna de Platão. Mas que saem em campo como soldados rasos ou guerrilheiros e milicianos que partem do virtual para os ataques reais. Sem entender isso, não seria possível eliminar o bolsonarismo em suas raízes. 

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